Bambino a Roma: continua a ser bonita a festa, pá

Cruzou-se connosco mais uma vez durante o ano de 2023, altura em que esteve em Queluz para receber o Prémio Camões a dois tempos – a atribuição já tinha sido decidida em 2019 – e para atuar de novo em Lisboa e Porto, perante salas lotadas. Chico Buarque tem uma relação de longa data com Portugal, por via da língua partilhada, da música, da literatura e até do futebol (desgraçadamente para alguns, até já se fez fotografar com a camisola do Benfica). Desta vez, o regresso faz-se através de um novo romance, depois de sucessos de crítica e público como Budapeste (Prémio Jabuti) ou Leite Derramado (Prémio Jabuti e Prémio PT ). O que significa que este autor multifacetado no campo da escrita, entre canções, romances e contos, e que muitos veem como alguém que poderia perfeitamente receber Nobel de Literatura, continua a criar. A seduzir leitoras e leitores, a construir mais divisões na sua casa literária e a encontrar palavras que permitem que a festa da imaginação continue. Sei que há léguas a nos separar, mas não parece.

 

O livro

Do que falamos quando falamos de Bambino a Roma, que chega às livrarias portuguesas a 23 de setembro? Falamos de memória, de recriação, de autobiografia tornada ficção. Ou vice-versa. No novo romance do Chico (perdoe-se-nos a familiaridade), somos transportados no espaço e no tempo até à Via San Marino, nas cercanias da esplêndida Galleria Borghese, na capital italiana: no rés do chão do número 12, um pequeno prédio amarelo, um menino traça caminhos no mapa-múndi que cobre a parede do seu quarto. As náuseas que sentiu durante a viagem de barco entre o Brasil e Itália ficaram para trás, e o desejo de traçar novas rotas cartográficas é deslocado para as ruas de uma cidade inteira por descobrir. O pretexto: o convite feito ao pai, Sérgio Buarque da Hollanda, em 1953, para lecionar na Universidade de Roma.

Pela mão de Chico Buarque, somos levados num périplo ziguezagueante por uma cidade que já não existe e talvez não tenha existido. Montados na sua bicicleta, vivemos com o autor a aventura de todas as reminiscências do fim da infância: as partidas de futebol com Amadeo, o filho do merceeiro; as saudades do feijão com arroz; as escapadelas da escola; as primeiras erupções do desejo; a paixão juvenil por Sandy L., alimentada por cartas e bilhetes românticos. A Cidade Eterna surge num equilíbrio delicado e irresistível entre memória e imaginação, compondo uma narrativa sedutora e comovente – timbres do autor –, abrindo as portas ao passado e a todos os mundos possíveis, mesmo que ficcionados. Bambino a Roma é uma aguarela temperada de lugares e recordações, numa cidade mais marcada pelos dramas do chiaroscuro.

 

 

 

Roma, cidade aberta

Bambino a Roma constrói-se então a partir de reminiscências de infância e pré-adolescência, mas depois do regresso da família ao Brasil, a cidade de Pedro voltaria a cruzar-se com Chico. Corria o ano de 1969, quando o autor decide voar até Roma da companhia da mulher, Marieta Severo, então grávida. Apesar de ter sido anunciada publicamente como uma visita de curta duração, tratava-se afinal de um exílio que haveria de durar 14 longos meses. À época, vivia-se a ditadura militar brasileira, que gostava de pôr em sentido os artistas e o seu discurso livre. Aconselhado por Caetano Veloso, depois da sua prisão pelos militares e posterior exílio em Londres, Chico volta a encontrar os ocres e os carmins de Roma, numa estadia forçada e com um caráter menos onírico. Só que, como diz a canção, amanhã há de ser outro dia, profecia que se cumpriu. De volta ao Brasil em 1970, Chico Buarque só se tornaria cada vez mais relevante, também no papel de escritor. Está na hora de conhecermos mais um dos seus enredos.

 

 

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