Neste novo romance, acabado de chegar à Elsinore, encontramos Rebecca, uma atriz famosa com 50 anos. Embora se ache mais atraente do que nunca, começa a sentir na sua própria pele a discriminação da indústria cinematográfica. Oscar é um escritor só um pouco mais novo do que ela, cuja vida pessoal e carreira se encontram num caos ao descobrir-se no centro do mais recente escândalo MeToo. Zoé Katana, feminista e bloguista, é a jovem vítima que regressou do passado para finalmente ajustar contas com ele. Os três irão iniciar um diálogo tenso, por meio de chat, e descobrir como uma amizade improvável pode nascer entre pessoas que, à primeira vista, nada têm que ver umas com as outras, e como essa força desconhecida as pode ajudar a lidar melhor com as suas ansiedades, neuroses, vícios, complexos, vergonhas e medos.
Trata-se de um romance empático qb da mais punk das autoras francesas, responsável pela provocação feminista Teoria do King Kong (edição Orfeu Negro) e por incursões contundentes na ficção, como a trilogia Vernon Subutex (edição Elsinore), cujo derradeiro volume em português chegará às livrarias no primeiro trimestre de 2024. Neste regresso aguardado e festejado de Virginie Despentes, Caro Idiota é um romance epistolar dos nossos tempos que aborda temas e episódios atuais, um livro de raiva e consolo sobre a violência das relações humanas e sobre as posturas ideológicas às quais estamos agarrados, mesmo quando há muito deixaram de nos fazer compreender não só a realidade mas também a velocidade e irreversibilidade da mudança. E aqui a palavra chave será mesmo consolo, porque há de facto uma doçura neste livro carregado de fúrias, consumos, incompreensões. Mas também de fraternidade e até, imagine-se, afeto.
Autora com as garras de fora
«Escrevo da terra das feias, para as feias, as velhas, as machonas, as frígidas, as malfodidas, as infodíveis, as histéricas, as taradas, todas as excluídas do grande mercado das gajas boas». É assim que arranca o referido Teoria do King Kong, manifesto abrasivo a partir da experiência pessoal da autora. Na sua ficção, também abundam socos diretos, ganchos, jabs e uppercuts literários; as personagens de Virginie preferem morrer a meter-se no yoga, vogam entre as armadilhas que a sociedade monta aos incautos e têm uma relação unha com carne com os estupefacientes, com as misérias humanas, com o conceito de moralidade.
Nascida numa família de classe operária de Nancy, Virginie Daget (Despentes é nom de plume) construiu um percurso de autora, escritora, cineasta, em paralelo com uma experiência de vida marcada por abusos, consumos e marginalidades. Com as suas obras, testa os limites da sociedade burguesa e da sua normalidade, acumulando provocações, invetivas e uma espécie de Voz da Verdade, com a autoridade de quem conhece os vários mundos de que se compõe a experiência humana contemporânea. Depois de uma adolescência especialmente problemática – foi internada pelos pais numa clínica psiquiátrica e sofreu uma violação aos 17 anos -, Virginie abandonou a família e os estudos e deambulou pelas cidades e pelas margens de uma França alheada do glamour; trabalhou como empregada doméstica, vendedora de discos, prostituta em casas de massagens, jornalista freelance de música e crítica de pornografia. E pelo meio foi lançando o seu discurso literário contra as convenções e as instituições, as quais tentaram abraçá-la: nomeada para a Academia Gouncourt, acabaria por renunciar ao posto para poder dedicar-se mais à escrita. Mas isto já numa fase de reconhecimento do seu valor autoral; para trás, ficava a proibição do seu filme Baise-moi, inspirado no livro que escreveu com o mesmo nome, agitando a pátria da Liberdade, Igualdade e Fraternidade durante os anos 90.
“A droga é como a violência. Legítima nas mãos do Estado. Delinquente nas mãos do indivíduo.”
Este é um dos muitos adágios que compõem Caro Idiota, livro que dá corpo ao regresso de Virginie Despentes ao catálogo Elsinore. Um livro que respira o ar do tempo e que tem no centro o vórtice de violência associado a redes sociais implacáveis e a julgamentos morais instantâneos. Naturalmente, pontuando a vida das personagens, surgem várias passagens em forma de reparo sobre o clima social, sobre o sufoco do indivíduo em contextos adversos, sobre o desafio da vida em ritmo acelerado, havendo espaço para o desconcerto provocado pelos confinamentos e pelo isolamento imposto pelo coronavírus. Rebecca, a protagonista, parece ter algo (muito?) de Virginie e a narrativa desenvolve-se numa cadeia de troca de correspondência digital, entre a comiseração, a raiva e a compreensão. A abordagem desdenhosa de Oscar àquilo a que chama “esta coisa do #MeToo”, que faz de si um alvo, desencadeia uma análise da sociedade francesa (e não só) através dos pontos de vista alternados do homem acusado, da atriz e da jovem acusadora, à medida que escrevem um ao outro ou publicam online. Espicaçando-se, invetivando-se, compreendendo-se, espicaçando-nos. Hoje, Virginie já não é exatamente uma marginal, alguém de fora do sistema. É, sim, uma autora no coração do métier literário apostada em eletrocutá-lo. Um romance de cada vez.