Livros que falam por si. Ah, e que são Nobel.

Apesar de aqui falarmos – e muito – de Literatura, chamemos a esta Penguin Magazine os conceitos da Matemática: é preciso ter em conta a ordem dos fatores. Certo, a legitimação pela Academia é importante e muitas vezes ajuda a aumentar o reconhecimento de autores e obras ímpares. Porque precisamos sempre de alguém que chancele escolhas, sobretudo num mundo cheio de referências; porque a prescrição, mesmo que por parte de uma Academia mais ou menos opaca, ainda funciona. Porque Nobel se tornou, em certa medida, uma marca da cultura popular.  

Na origem, a intenção de Alfred Nobel, inventor e industrial, passou por agraciar anualmente cinco representantes de áreas-chave para o desenvolvimento da Humanidade, deixando-lhes um fundo milionário à disposição. Dessas cinco iniciais (mais tarde, juntar-se-iam as Ciências Económicas), faz parte a Literatura. Alfred achava-a, então, um benefício líquido para a Humanidade, estatuto conquistado ao longo de séculos de narrações e inspiração. A verdade é que os livros, as obras de relevo, preexistem os prémios, quaisquer que sejam, e é ao sabor dessa evidência que o catálogo Cavalo de Ferro, dobradas duas décadas de existência, se vai construindo.  A espaços, acaba por ir ao encontro de um reconhecimento que ajuda a disseminar o valor literário destes autores de ferro, embora este já esteja gravado a letra de forma nas páginas dos livros.  

Nesta Penguin Magazine, queremos vincar o valor das obras que acabaram por ver assinalado o seu valor superlativo. Uma escolha de essenciais num mar de imprescindíveis, refletindo vários géneros e universos de escrita.  

 

2023

Uma Brancura Luminosa |Jon Fosse

Tradução de Liliete Martins

Foi a obra mais recente de Jon Fosse – Nobel de Literatura em 2023 – a chegar ao catálogo da Cavalo de Ferro. Escrita depois da conclusão da aclamada Septologia, que deverá ter o terceiro e último volume publicado por cá no próximo outono, é considerada a melhor porta de entrada na obra do autor norueguês. Neste romance conciso, um homem conduz sem destino. Ao acaso, vira à direita e à esquerda até que chega ao final da estrada na orla da floresta e o seu carro fica atolado. Pouco depois começa a escurecer e a nevar. O homem sai do carro e, em vez de ir à procura de alguém que o ajude, aventura-se insensatamente na floresta escura, debaixo de um céu negro e sem estrelas. Perde-se, quase morre de frio e de cansaço, envolto numa impenetrável escuridão. É então que surge, de repente, uma luz que marca esta história estranha e sublime. 

 

 2021

Vidas Seguintes |Abdulrazak Gurnah 

Tradução de Eugénia Antunes

Abdulrazak Gurnah foi agraciado com o Prémio Nobel de Literatura 2021 «pela forma determinada e humana com que aborda e aprofunda as consequências do colonialismo e o destino do refugiado no fosso entre culturas e continentes».   

Neste romance encontramos o jovem Ilyias que, após fugir da aldeia onde nasceu, numa região fustigada pela pobreza, pela fome e pela doença, chega a uma pequena cidade costeira onde assiste a um desfile da Schutztruppe, a feroz «tropa de proteção» da África Oriental Alemã. Anos mais tarde, perante a iminência de uma grande guerra entre Britânicos e Alemães, Ilyas decide juntar-se a esse mesmo exército de mercenários africanos, prometendo à sua irmã mais nova voltar muito em breve. A promessa fica por cumprir, e o paradeiro desconhecido do irmão ensombra a vida de Afiya até que ela conhece Hamza, um desertor generoso e sonhador que conseguiu escapar aos horrores da guerra.  

 

2019

 Empúsio |Olga Tokarczuk

Tradução de Teresa Fernandes 

Empúsio marca o regresso de Olga Tokarczuk ao romance, depois de lhe ter sido atribuído o Nobel de Literatura em 2019. O título é uma amálgama linguística entre Empusa, figura mitológica grega, e Simpósio – e pode ser lido como um diálogo com a grande tradição literária europeia e os seus dogmas, em particular com A Montanha Mágica, de Thomas Mann, apresentando um protagonista que se revela símbolo de resistência e de anseio por um mundo radicalmente diferente. 

Nesta narrativa, encontramo-nos em setembro de 1913. Mieczyslaw Wojnicz, estudante de Engenharia de Lviv, chega à cidade termal de Görbersdorf, na Baixa Silésia, sede de um dos mais famosos sanatórios da Europa e do mundo. É aqui, no sopé das montanhas, que espera travar a progressão da sua tuberculose. Na Hospedaria para Cavalheiros onde reside, doentes oriundos de Viena, Königsberg, Breslau e Berlim juntam-se ao serão para tomar um cálice do retemperante licor Schwärmerei e filosofar sobre a natureza do mundo e de Deus, a política, ou o papel das mulheres. Contudo, não são só as grandes polémicas intelectuais da época que ocupam a mente destes homens. Há notícias de corpos sem vida encontrados mutilados na floresta circundante, dando a ideia de que forças obscuras estão à espreita escolhendo o seu próximo alvo. O desenlace deste Empúsio será o mais surpreendente nas obras de Tokarczuk. 

 

1981

Massa e Poder | Elias Canetti 

Tradução de Paulo Osório de Castro e Jorge Telles de Menezes 

Nestas páginas, de imensa erudição, energia e fúria criativa, Canetti – filósofo, ensaísta e romancista descendente de judeus sefarditas – reflete  e relaciona os mais diversos temas (desde os mitos e ritos religiosos primitivos, às posturas corporais do homem, à inflação e ao moderno sistema parlamentar) e conjuga várias áreas do saber, transportando o leitor numa viagem pela antropologia, psicologia, biologia, história, política, economia, religião e literatura, através de uma escrita límpida e atraente que alia conhecimento científico e descrição narrativa. 

Nas palavras da ensaísta Susan Sontag, «Canetti dissolve a política em patologia, tratando a sociedade como uma actividade mental – de tipo bárbaro, claro – que deve ser descodificada.»  

 

1972

Retrato de Grupo com Senhora | Heinrich Böll

Tradução de Maria Adélia Silva Melo 

Quem é Leni Pfeiffer? Mulher fascinante e sensual, viúva de guerra, cidadã alvo de ostracismo devido à sua vida amorosa passada e presente, mãe de um filho a cumprir pena de prisão. Na sua detalhada investigação sobre esta personagem, o autor-narrador de Böll, tal como um detetive privado, recorre a fotos, cartas, objetos pessoais, notas e testemunhos de todos os que de alguma forma se cruzaram com Leni: o irmão, Heinrich, morto por deserção, a melhor amiga, Margret, prostituta, a freira Rahel, que lhe serviu de pedagoga, os homens que a tentaram proteger, os seus amantes; é neste caleidoscópio de informação, polémica e contraditória, que se reconstrói a biografia de uma figura enigmática, uma anti-heroína que atravessa os acontecimentos mais marcantes da conturbada História da Alemanha contemporânea: do nazismo à miséria física e moral dos anos da guerra e do imediato pós-guerra, traçando com rigor o retrato de uma inteira geração. 

Romance inventivo, ao mesmo tempo trágico, grotesco e lírico, Retrato de Grupo com Senhora foi considerado a obra decisiva para a atribuição do Prémio Nobel de Literaura a Heinrich Böll, em 1972.

 

Nestas escolhas de livros fundamentais, que acabariam por ser chancelados a Nobel, trata-se a sociedade de diversos ângulos. E porque o mundo é um lugar complexo, resta-nos saudar a Literatura. Mesmo além dos prémios. 

 

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