A voz dos tradutores

Nunca como agora se falou tanto, em Portugal, sobre o ofício do tradutor. Somos, reconhecidamente, um país com «tradutores de referência», artesãos da língua portuguesa que conferem um carimbo de qualidade aos livros a que se dedicam. Nas últimas décadas, são incontornáveis, por exemplo, os nomes de António Pescada, António Sousa Ribeiro, Helena Topa, Isabel Castro Silva, João Barrento, Jorge Vaz de Carvalho, Margarida Periquito, Maria de Lourdes Guimarães, Paulo Faria ou Pedro Tamen, para nomear apenas alguns. Apesar de povoarem as nossas estantes, nem sempre reconhecemos os seus nomes de imediato, exceto quando são também escritores de relevo, como, por exemplo, Ana Luísa Amaral, Daniel Jonas, Frederico Lourenço, José Bento, Luísa Costa Gomes, Margarida Vale de Gato, Tânia Ganho ou Vasco Graça Moura. 

Mais do que nunca, importa nomear os tradutores. Sem o seu trabalho de engenho e minúcia, não conheceríamos a grande literatura mundial tal como ela existe em português. Numa altura em que o foco mediático se dirige para a ameaça da Inteligência Artificial que paira sobre as condições de trabalho dos tradutores e com a criação do Coletivo de Tradutores Literários, conversámos com alguns dos membros desta nova estrutura. 

 

Catarina Ferreira de Almeida, Guilherme Pires, Nuno Quintas e Teresa Fernandes Swiatkiewicz aludem a dificuldades, objetivos e desafios do futuro próximo. 

 

Teresa Fernandes Swiatkiewicz

Teresa Fernandes Swiatkiewicz convoca Lawrence Venuti, teórico da tradução, a propósito da voz autoral do tradutor, um aspeto controverso, mas crucial: «A figura do tradutor apaga-se quando este executa a tradução com tal grau de obediência às normas de escrita da cultura de chegada, que o texto traduzido transmite a impressão de ter sido escrito originalmente na língua de chegada. […] Venuti chega a afirmar que quanto mais fluente for a tradução, mais invisível é o tradutor.» 

Autora da tradução para português dos livros de Olga Tokarczuk (Prémio Nobel da Literatura), Teresa Fernandes Swiatkiewicz integra o recém-criado Coletivo de Tradutores Literários (CTL), estrutura que visa defender os direitos dos tradutores e a qualidade das traduções, assim defendendo também o interesse dos leitores. 

 

Que ofício é este? 

 Guilherme Pires, refletindo sobre as exigências que se colocam ao tradutor literário, afirma: «Alguns textos e autores são mais exigentes do que outros, para toda a gente — editores, leitores, tradutores, revisores —, outros são mais imediatos, exigem menos recursos estilísticos e uma poética menos única. […] O que distingue um tradutor de outro é a qualidade do seu trabalho, a sensibilidade da sua inteligência, a capacidade de adaptação da sua voz tradutora.» 

Catarina Ferreira de Almeida traduz ficção há mais de vinte anos, e tem tido a sorte e o engenho de poder guiar-se pelo seu gosto pessoal. «Fiz o meu caminho com a preocupação de traduzir autores que me inspiram e de que gosto. […] A bússola tem sido o meu gosto pessoal, o esforço de me aproximar de autores e de livros que admiro e que acrescentam algo.» 

Em Portugal, muitos tradutores conjugam este ofício com outros trabalhos – tal como muitos escritores –, o que torna ainda mais relevante uma estrutura como o CTL, apostada em conquistar reconhecimento para os tradutores. 

Guilherme Pires

 

 

A força coletiva 

 Na génese do CTL estiveram, além de Guilherme Pires, os tradutores Alda Rodrigues, Madalena Caramona, Margarida Vale de Gato e Nuno Quintas. Palavra puxa palavra, e com a inevitável ajuda das redes sociais, o movimento rapidamente cresceu. A primeira mentora desta iniciativa terá sido, sem o saber, Helena Topa (1964-2023), autora de algumas das mais emblemáticas traduções portuguesas a partir do alemão. Guilherme Pires explica: «Tive um conjunto de conversas com a saudosa Helena Topa, também ela pessoa reivindicativa, tradutora, mulher das letras, cujo objetivo era criar um grupo deste tipo. Infelizmente, a morte pôs-se entre nós. Mas sem ela talvez não existisse este coletivo.» 

Os objetivos do CTL são claros: garantir condições de trabalho mais justas, denunciar casos de abuso e atropelo de direitos, «promover o ofício da tradução, a sua importância para a sociedade e a cultura». Um processo que envolve todo o setor do livro. Por iniciativa da APTRAD (Associação de Profissionais de Tradução e Interpretação), foi lançado um «Inquérito sobre as condições de trabalho e remuneração dos tradutores literários em Portugal», que contabilizou mais de 140 participantes. Elaborou-se então uma proposta para ser apresentada à Associação Portuguesa de Editores e Livreiros. Esta proposta diz respeito a «aspetos relacionados com os contratos, a remuneração na tradução e na revisão literárias, o enquadramento fiscal da classe dos tradutores, a visibilidade e o reconhecimento do seu trabalho e utilização da IA no setor editorial».  

A remuneração, «estagnada há mais de vinte anos», como sublinha Catarina Ferreira de Almeida, tem sido um dos aspetos mais referidos nos fóruns de discussão. É possível viver da tradução? «É possível, mas difícil. Considero que tradutores e revisores são extremamente mal pagos pelo trabalho que fazem […]. Parece-me inexplicável que os profissionais que estão na base da criação do livro traduzido ganhem o mesmo que ganhavam há vinte anos (ou menos), que o seu nome não seja mencionado nos canais de comunicação das editoras e livrarias, que os seus direitos autorais não sejam, muitas vezes, respeitados.» 

Nuno Quintas é associado da APTRAD e faz parte do grupo de trabalho que esta entidade nomeou para trabalhar com o CTL, numa parceria «fundamental para a criação de pontes concretas entre os tradutores, a APEL e algumas editoras». Relativamente à junção de esforços, sublinha: «Trabalhamos todos em conjunto pela defesa do ofício. […] Por um lado, em diálogo direto e continuado com os representantes do setor editorial e com outras entidades, como a Autoridade Tributária, procuramos melhorar as condições em que atualmente se exerce a atividade de tradução e revisão. Por outro, e à luz do esforço de dar visibilidade ao tradutor que é promovido, por exemplo, ao nível da União Europeia, procuramos também garantir uma presença maior destes profissionais nas ações de divulgação dos livros, e em diferentes eventos e festivais literários.» 

 

Alda Rodrigues

 

Uma espécie de Revolução Industrial 

 O elefante no meio da sala, atualmente, é a Inteligência Artificial. De acordo com Guilherme Pires, «defendemos o papel criativo do tradutor: somos agentes criativos, o texto que escrevemos é nosso, é único e fruto do nosso ato de criação; não somos substituíveis por máquinas; reconhecer isto tem consequências diretas no modo como os editores, os jornalistas, as empresas editoriais e as entidades públicas nos veem». 

A marca autoral do tradutor, «inevitavelmente, tinge a voz do autor original do texto», e a necessidade de adaptação a cada texto e a cada autor não belisca a própria faceta autoral. Se a «invisibilidade» mencionada por Teresa Fernandes Swiatkiewicz se refere sobretudo à qualidade da tradução, quanto à «assinatura», deseja-se o contrário. «O texto que criamos é a nossa versão do livro original. Essa carga autoral é o pilar do nosso ofício — por isso é que os nomes dos tradutores deviam surgir nas capas dos livros, nas fichas dos livros nas livrarias, na comunicação das editoras, na menção a prémios literários, por aí fora», afirma Guilherme Pires.  

Para Teresa Fernandes Swiatkiewicz, «a prova de que no trabalho de tradução existe algo de autoral é o facto de não existirem duas traduções iguais feitas por seres humanos, ao passo que um mecanismo automático de tradução traduzirá o mesmo texto sempre da mesma maneira.» 

Catarina Ferreira de Almeida lembra que o estatuto autoral do tradutor é defendido no Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos: «A minha versão de uma obra é pessoal e irrepetível. Muitas vezes, no caso dos textos clássicos, são publicadas várias traduções da mesma obra. São todas diferentes umas das outras. O trabalho de tradução é um trabalho único de recriação de um texto.» 

Alda Rodrigues, num texto publicado na revista online Almanaque, explica assim a questão: «Os tradutores não se despersonalizam nem encarnam os autores. […] Na tradução não há magia, práticas mediúnicas, nem falsificação. É impossível traduzir com os conhecimentos, as experiências e os pensamentos do autor: ninguém tem acesso à cabeça de outra pessoa. Os tradutores traduzem com tudo o que sabem, com tudo o que viveram e com todas as palavras que conseguem convocar a partir dos textos do autor..» 

Em abril deste ano, mais de 60 escritores, tradutores, revisores, editores e livreiros dirigiram ao Ministério da Cultura uma «Carta aberta sobre o recurso à inteligência artificial no mercado editorial». Aí pode ler-se: «Traduzir obriga a decisões e escolhas interpretativas altamente variáveis […]. Há um irredutível carácter autoral no ato de traduzir.» Graças a esta junção de forças, e tal como já acontece nos grandes mercados editoriais da Europa, também em Portugal este é agora um diálogo que precisa de ter lugar. 

 

 

Catarina Ferreira de Almeida

 

Clássicos, premiados e afins 

Quanto à tarefa de traduzir alta literatura, como a canónica ou nobelizada, Teresa Fernandes Swiatkiewicz concorda que traz desafios acrescidos. O amor da tradutora pela poesia de Wisława Szymborska, por exemplo, levou-a a retraduzir a sua obra em pequenas antologias temáticas. «Ao propor novas traduções da poesia de Szymborska, não tenho em mente fazer melhor, mas, sim, fazer diferente e basear-me numa estratégia fundamentada, com uma abordagem linguística, cultural e estética diferente, abrindo portas a novas interpretações.» 

Catarina Ferreira de Almeida, que se dedica também à tradução de clássicos e conta já com dois prémios (Grande Prémio de Tradução Literária para O Retrato de Dorian Gray, de Oscar Wilde, e Menção Honrosa no Grande Prémio de Tradução Literária para Longe da Multidão, de Thomas Hardy), defende que «a tradução de um clássico exige, muitas vezes, um trabalho de revisitação de traduções anteriores». Por outro lado, é «o encontro (virgem) entre um autor e um tradutor, distantes no tempo e muitas vezes no espaço, que ilumina outros aspetos da mesma obra. A tradução é sempre uma ponte viva e, por isso, mutável, entre o autor do texto original e o leitor da versão traduzida». 

Perante a ameaça da Inteligência Artificial e a aceleração tecnológica dos anos recentes, Guilherme Pires profetiza: «O oráculo que existe em mim diz-me que primeiro cairão os tradutores dos textos ditos comerciais, de ficção e não-ficção, mais simples, menos exigentes, estilisticamente mais limpos […]; pouco depois, alguma literatura (a alta literatura, vá) passará pelo mesmo; por fim, até os futuros clássicos, o cânone de amanhã, passarão pelas mãos digitais da máquina. Acredito que não acontecerá com todos os livros, com todos os autores, com todas as editoras; haverá ilhas de resistência, e da reação dos leitores dependerá muito do futuro da edição e da tradução.» 

 

Tradutores (e leitores) do futuro 

 

Para esclarecer equívocos habituais, Alda Rodrigues, no já citado texto da Almanaque, coloca a tónica na relação entre os leitores e os livros que estes escolhem: «Um tradutor não precisa de enganar ninguém: quando leem uma tradução, os leitores sabem que não estão a ler o original […]. Quando se muda de língua, tudo muda. Entre duas línguas tão díspares, como, por exemplo, o inglês e o português, está afastada à partida qualquer possibilidade de replicar ou copiar o original palavra a palavra na língua de chegada. […] Os bons tradutores não interpretam só as palavras. Têm de interpretar o que está em questão no texto – que inclui conteúdos e informação que escapam às palavras. Não se traduz palavra a palavra: traduz-se frase a frase, parágrafo a parágrafo, tendo em consideração o texto integral e também a sua relação com outros textos no passado e no presente – na língua de partida, na língua de chegada e noutras línguas também.» 

Para Catarina Ferreira de Almeida, o que está em jogo no momento presente é uma escolha e uma responsabilidade partilhada. «O futuro da tradução literária está nas mãos, não só do setor editorial e livreiro, como de todos os leitores de livros traduzidos para a nossa língua. É uma escolha a favor da língua e da literatura, ou a favor da sua obliteração pela lógica bruta dos mercados, pelo consumo acrítico e pelo abandono progressivo de boas práticas de leitura. No fundo, o futuro da tradução também será o futuro da língua e da literatura, o futuro da leitura: todos estes futuros dependem da missão que cidadãos, editores e livreiros decidam abraçar. Nós, tradutores, já abraçámos a nossa, por vezes com grandes sacrifícios pessoais.» 

Teresa Fernandes Swiatkiewicz propõe a criação de um selo de qualidade. «As editoras que respeitam e continuam a recorrer ao trabalho dos tradutores poderiam avançar com um selo do género do fairtrade. Por exemplo: Fairtranslation 

Guilherme Pires confia na união de esforços. «Juntos somos sempre mais fortes, e o movimento que o CTL e a APTRAD querem manter vivo terá necessariamente reação da parte do meio, será acolhido por muitos editores, revisores e gestores de empresas editoriais, que pensam o livro, a literatura e a cultura como nós. O meu pessimismo esbarra nessa crença. É uma dupla presença nos meus pensamentos, mas não me importo de ter duas vozes à conversa na minha cabeça.» É, de resto, assim que estes artífices da língua passam os seus dias. Palavra de tradutor. 

 

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