De professor em Oxford a rei de uma ilha: a vida de Javier Marías em 5 incríveis capítulos

O blazer azul era a sua imagem de marca. Na lapela era frequente usar uma pregadeira com o retrato de William Shakespeare que tinha comprado num leilão em Inglaterra – tinha pertencido a Robert Donat, protagonista de alguns filmes de Alfred Hitchcock. Eram pequenas relíquias como esta que ocupavam, juntamente com os livros, as estantes da casa de Javier Marías. Prémios não havia – o Nobel da Literatura escapou-lhe, embora fosse sempre um dos nomes espanhóis mais falados, e os outros não lhe interessavam. Nas prateleiras preferia ter uma coleção de soldadinhos de chumbo, uma memória de infância que foi alimentando ao comprar peças no Bazar Matey, em Madrid.

Marías era assim: fora da caixa, crítico, polémico e um dos mais brilhantes escritores espanhóis da atualidade. Com cerca de dez milhões de exemplares vendidos em todo o mundo, a sua obra está publicada em 46 idiomas e 59 países.

Morreu a 11 de setembro de 2022, a poucos dias de completar 71 anos, mas deixou uma vasta obra literária e um reinado – um reinado a sério, mesmo no meio das Caraíbas.

 

Rei da Ilha Redonda

Javier Marías era rei desde 1997 (o quarto desta peculiar dinastia). Antes de explicarmos qual o seu legado, é preciso contextualizar o título.

A história começa no século XIX como um presente de um banqueiro para o filho. Depois de muito insistir, a coroa britânica cedeu o território e o título de monarca. Nunca passou disso mesmo, um mero título, sem qualquer poder.

Para desgosto do pai, M. P. Shiel não tinha qualquer interesse na banca. Era escritor e foi assim que decidiu que a Redonda seria um reino literário. A sucessão não estaria limitada a laços de sangue, mas passaria, sim, de mentores para discípulos. Foi assim que John Gawsworth passou a rei com a morte de Shiel. Gawsworth acrescentou outros títulos ao seu reino e os romancistas Henry Miller e Lawrence Durrell, por exemplo, passaram a duques. Porém, foram décadas atribuladas. John Gawsworth morreu sozinho e alcoólico, a dormir nos bancos de jardim de Londres. O sucessor foi John Wynne-Tyson, um autor britânico.

Entrou então em cena Javier Marías que, fascinado com a história, a contou parcialmente em Todas as almas. A Wynne-Tyson pouco interessava a coroa, que foi oferecida ao escritor espanhol. E ele não parou.

Para honrar o título e o reinado, fundou a editora Reino da Redonda, cujo primeiro título foi lançado em 2000. O escolhido foi La mujer de Hughenin, precisamente de M. P. Shiel. A escolha era cuidada, não publicando mais do que duas ou três obras por ano.

«Limito-me a recuperar livros maravilhosos que ficaram esquecidos e a oferecer alguns novos que, na minha opinião, deviam ser conhecidos na minha língua e no meu país», explicou à versão espanhola da revista Publishers Weekly em 2020.

Havia também um prémio que homenageava o conjunto da obra de um escritor ou de um cineasta. A distinção traduzia-se em três mil euros e um título, o de duque. Pedro Almodóvar, Ray Bradbury, Francis Ford Coppolla, Umberto Eco, Vargas Llosa, Alice Munro ou o português António Lobo Antunes fazem parte da lista.

Com três quilómetros quadrados, a Redonda não tem habitantes e parece um elemento mítico de um qualquer romance. Para já, não se sabe quem será o sucessor de Marías.

 

Infância nos Estados Unidos, influência cinematográfica

Podia ter escolhido uma profissão qualquer? Se calhar podia, mas não é certo que a genética deixasse sequer. O pai era o filósofo espanhol Julián Marías. A mãe, Dolores Franco, era professora de Letras e tradutora. Javier Marías nasceu a 20 de setembro de 1951, em Madrid, sendo o mais novo de quatro filhos.

O pai tinha passado a Guerra Civil espanhola a divulgar propaganda republicana e escapou por pouco ao fuzilamento. Quando o conflito terminou, estava proibido de lecionar em universidades espanholas, por isso começou a aceitar trabalho nos EUA. Foi para lá que a família se mudou toda. Quando ouviu falar inglês pela primeira vez em Yale, Marías ficou fascinado e essa paixão perduraria pelas traduções que foi fazendo ao longo dos anos.

Ser filho de um escritor não era uma herança que lhe agradava assim tanto. «A verdade é que o meu pai nunca foi nepotista, pelo contrário, e devo-lhe muitas coisas. Mas não lhe devo realmente benefícios ou favores na hora de conseguir ser publicado. Nunca consegui um emprego através dele», contou em entrevista a Elide Pittarello.

Sobrinho do cineasta Jesús Franco e primo de Ricardo Franco – para eles escreveu e traduziu argumentos, além de ter sido figurante em alguns filmes.  Foi com o tio que passou um verão em Paris, aos 17 anos. Durante seis semanas esteve horas infinitas na Cinémathèque Française, onde assistiu a mais de 80 filmes. Foi deles que nasceu a inspiração para Os domínios do lobo, o seu primeiro romance (que será editado pela Alfaguara em dezembro deste ano), que publicaria dois anos mais tarde. Nessa altura estudava Filosofia e Letras na Universidade Complutense de Madrid.

Mais tarde, foi professor de Literatura Espanhola e Teoria da Tradução em vários países. Primeiro na Universidade de Oxford, Reino Unido, em 1983 e 1985. Depois, fez o mesmo em Boston, EUA, no Wellesley College, e na Universidade Complutense de Madrid.

 

Um método à moda antiga

Coração tão branco, editado em 1992, deu-lhe o reconhecimento dos leitores e da crítica. Viria a produzir 16 romances (Os enamoramentos, Assim começa o mal, Todas as almas), além de artigos de opinião e ensaios.

Escrevia à máquina. Sempre. Terminava uma página, retirava-a da engrenagem, lia-a, fazia correções à mão e voltava a passar tudo a limpo. Um método lento para muitos, mas não para Marías. «Não escrevo para ganhar tempo, escrevo para reconhecer que ele existe», explicou ao jornal ABC.

Os intervalos entre as suas obras eram de três a cinco anos. Tomás Nevinson é a mais recente obra traduzida para português (Alfaguara, dezembro de 2021). Era muito metódico a escrever.

Geralmente levantava-se por volta das 11 horas e escrevia até às 14 ou 15 horas, altura em que parava para almoçar. À tarde regressava ao escritório e ao som mecânico das teclas da máquina de escrever. Só jantava depois das 21 horas e depois, até às três da manhã, ouvia música, lia ou via filmes.

Também não tinha e-mail. A máquina de escrever sempre foi o seu único veículo. O que dali saía era depois digitalizado por um assistente e enviado em formato PDF à pessoa a quem se dirigia a correspondência.

 

Prémios? Não, obrigado

Fumava muito, era frequente ter um cigarro entre os dedos, e isso também o levou a recusar convites em diversas ocasiões. Viajar para fora de Espanha incluiria uma data de restrições: não poderia fumar no avião, no hotel, em auditórios ou restaurantes. Por isso, não ia.

Em Espanha não fazia nenhum esforço extra. Não gostava de cerimónias oficiais, não queria convites dos Institutos Cervantes ou de universidades públicas, também declinava ir aos estúdios da RTE (Rádio Televisão Espanhola). As retaliações que tinha visto em relação ao pai acabaram por ditar todas essas decisões. Profundamente crítico em relação ao governo – e polémico em muitos outros tópicos, como os comentários que teceu relativamente ao movimento #MeToo que lhe valeram muitos olhares de lado –, aceitou um único prémio nacional: o de tradução, em 1979, com a obra Tristram Shandy.

Em 2006 foi eleito membro da Real Academia Espanhola, uma posição que tinha recusado várias vezes até então porque o pai ocupava um lugar na instituição.

 

Um amor com mais de 30 anos

Já estavam juntos há mais de três décadas quando, em 2018, Javier Marías e Carme López Mercader se casaram. Fizeram-no por questões burocráticas depois de o escritor ter percebido que, na eventualidade da sua morte, 70% do seu legado iria parar às mãos do governo e não àquela que era há muito a sua companheira.

«O amor da minha vida», assim se referiu Marías à editora inúmeras vezes. Elogiava-lhe o sentido de humor e os assuntos que nunca faltavam entre ambos.

Nunca tiveram filhos juntos – Mercader tinha dois, de uma relação anterior – e o próprio casamento não era comum. Em 2019, em entrevista ao jornal The New York Times, Marías explicou que a mulher vivia em Barcelona e que os dois passavam «duas a três semanas juntos e de quatro a cinco separados».

Seria esse o segredo para a longevidade? Javier Marías acreditava que sim, até porque já tinha tido várias relações à distância. Assim, dizia ele, era «mais difícil cansar-se um do outro e há tempo para sentir saudades».

 

A poucos dias de completar 71 anos (nasceu a 20 de setembro de 1951), Javier Marías não resistiu a uma pneumonia que se agravou nas últimas semanas. Morreu a 11 de setembro de 2022 e regressou ao ponto de partida um dia depois, sendo cremado em Madrid, depois de uma cerimónia íntima apenas para familiares e amigos próximos.

Podíamos procurar inúmeras formas de lhe fazer uma homenagem. Porém, as palavras mais poéticas para descrever este fim de ciclo já ele as tinha escrito em Os enamoramentos:

«Só quando alguém morre é que pensamos que já se fez tarde para qualquer coisa, para tudo – e mais ainda para o esperarmos –, e nos limitamos a dar-lhe baixa.»

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