1 de janeiro de 1982. No dia em que um latino-americano era eleito pela primeira vez Secretário-Geral das Nações Unidas – a distinção caberia ao peruano Pérez de Cuellar – Fernanda Melchor vinha ao mundo em Veracruz, México. Anos depois, valendo-se da sua evidente mestria na arte de narrar, Fernanda haveria de pôr a mesma Veracruz no mapa da literatura. Temporada de Furacões, originalmente publicado em 2017, oferece-nos uma perspetiva selvagem sobre a sua terra natal, partindo de um caso verídico para uma ficção que nada fica a dever ao contexto social e emocional que molda as vidas daquele país amaldiçoado pela violência. Pelas violências, na verdade.
A Sangue Quente
Fernanda Melchor é jornalista de formação. Ao longo dos anos, tem publicado aquilo a que convencionamos chamar não ficção numa série de jornais e revistas internacionais como The Paris Review, Le Monde Diplomatique ou a versão latino-americana da Vanity Fair. Foi por esse ângulo que Fernanda decidiu partir para o livro: ao tomar conhecimento de um assassinato em Veracruz, motivado por acusações de bruxaria, decidiu seguir os passos de Truman Capote e contar em primeira mão os contornos de (mais) crime violento, que lhe chegou às mãos numa pequena nota da imprensa regional. No entanto, e dada a insegurança da zona, na qual operam vários cartéis, ou narcos, Fernanda optou pela ficção, evitando vestir a pele de “forasteira a fazer perguntas estranhas”, nas suas próprias palavras. Como tal, escolheu o caminho da ficção literária, criando personagens que contam não apenas a história, mas também o México. Os seus problemas, as suas desigualdades, as suas impunidades. Isto tudo de um fôlego.
México Insurreto
Fernanda nasceu e cresceu num país inseguro, mas caloroso, violento, mas hospitaleiro. Os lugares são assim, feitos de contradições. Na sua ficção, decidiu contar estas questões, estes problemas. A violência e os abusos não são de hoje; 14 anos antes de Melchor vir ao mundo, dava-se o chamado Massacre de Tlatelolco. Às ordens das autoridades, foram baleados centenas de estudantes em protesto na Cidade do México, incidente grave com um número indeterminado de vítimas. E esta atmosfera de impunidade estatal não conhece limites temporais. Vem do passado, marca o presente e não se vislumbra o seu fim. Esse é um dos pontos que Fernanda Melchor quis vincar, ao contar a história de Norma, da Bruxa e do crime mais ou menos ficcional de La Matosa. Na sua opinião, o estado mexicano é impune há demasiado tempo e as pessoas comuns têm tanto a temer das autoridades como dos criminosos. Há uma fragilidade geral naquele país que expõe corpos, consciências e valores morais a todas as brutalidades. Assiste-se a uma decomposição das instituições, a uma crueldade entranhada e generalizada. Na Literatura, isso não podia ser exceção.
La Matosa
Temporada de Furacões não é o primeiro romance de Fernanda Melchor (estreou-se com Falsa Liebre), mas foi com ele que chamou a atenção do mundo das letras. Multipremiada, finalista do International Booker Prize, e elogiada no The Guardian e no The New York Times pelas edições inglesa e norte-americana, respetivamente, captou a atenção dos leitores com um autêntico vendaval. De palavras, de emoções, de superstição, de violências – ei-las, uma e outra vez. A história da Bruxa assassinada, cujo cadáver abandonado assombra as primeiras páginas do livro, leva os leitores a uma viagem por um país que não é para mulheres. Um país machista, misógino e brutal, sem contemplações nem remorsos. Recorrendo à oralidade, ao calão e a parágrafos torrenciais que podem durar dezenas de páginas, Melchor decidiu-se por um romance polifónico, com muitos pontos de vista, e envolve-nos, mas sova-nos; conta-nos uma história, mas magoa-nos. Leva os leitores ao desespero e ao espanto, partindo do tal real para escrever ficção em carne viva. Uma coisa parece certa: esta escrita abrasiva não vai sarar tão cedo.