O novíssimo romance de Hugo Gonçalves, Revolução, já chegou às mãos dos leitores. Que é como quem diz, a Revolução está na rua! Por estes dias, o livro foi apresentado ao vivo e a cores pelo autor e pelo convidado especial Fernando Alves, voz e alma da TSF durante décadas. Agora em registo de aposentado, Fernando atirou-se à ficção de Hugo, pretexto para revisitar tempos e imaginar futuros. De forma tão articulada e generosa, que não resistimos a partilhar aqui as palavras do jornalista-leitor, que não deixou de ter à mão o seu caderno de apontamentos.
«Comecei a ler este livro no meu primeiro dia de reformado. Querem franqueza? Tinha imaginado um regresso, talvez a Flaubert, talvez a Camilo, à Brasileira de Prazins, por puro deleite, revisitando uma revelação formidável mal digerida no afogadilho da juventude, agora porventura saboreada não apenas nos detalhes mais preciosos da trama. Ou, em alternativa, uma incursão no desconhecido. O prazer de colher das estantes um fruto nunca provado, como O Grito dos Pássaros Loucos, de Dany Laferrière, um haitiano obrigado ao exílio durante a ditadura de Baby Doc que agora ilumina os meus dias.
Não cuideis que me queixo. Ressalvo apenas que preferiria ter lido este poderoso livro de Hugo Gonçalves sem o caderno de apontamentos à mão, sem o caderno de encargos, sem outro cuidado que não o do leitor devotado, mas desprevenido e livre. Não me queixo, repito. Não me posso queixar de uma tarefa que me deu prazer, mas me obrigou a cuidados que não são propícios a um início de reforma descansado. Muito menos a uma leitura sem freio. Nos últimos anos foram os meus dias, tantas vezes, feitos de leituras de dever de ofício, por mais enriquecedoras. Leituras necessárias à preparação de uma entrevista, por exemplo. A última sms do Hugo sugeria que fizesse uma coisa simples. Não poderia ser de outro modo, para mais do que isso não tenho arcaboiço nem ferramenta. Aqui estão, pois, as minhas notas sobre esta saga sacrificial de uma família unida por fios soltos de sucessivos desencontros trágicos e irremediáveis. Esses desencontros, de dolorosos encontros feitos, conduzem a um abismo. Todos os que neste livro se nos revelam, arautos de um poder popular armado ou sicários de uma extrema direita ressabiada, ajudam a definir uma galeria de fantasmas que o autor reaviva para que de novo cruzem os últimos anos da ditadura e sucumbam, ora gloriosa, ora pateticamente, no frémito paradoxal dos dias em que tudo parecia possível enquanto todas as cordas eram esticadas até partirem.
O livro chama-nos a mergulhar até ao fundo de um poço da morte em que as acrobacias são sempre inglórias. Vamos assistir ao modo como muitos desfaleceram na parede vertical do poço sem fundo, nas suas vidas descartáveis, presas por um fio, “antes o poço da morte que tal sorte”. MERGULHAR, disso se trata, de esconder, ir ao fundo, disso se trata no país da clandestinidade, mas também impregnar-se, embeber a pele nas esquinas, noutra pele, mudar de pele… mudar de nome. Disso começa por tratar o romance destes desesperados que parecem sucumbir sempre, prisioneiros da ordem que contestam e da outra que é a sua circunstante armadura (ou será a camisa de onze varas que vestem para o combate, aquilo a que Maria Luísa, a clandestina, chama “jargão da teoria” quando Évora lhe mostra o mesmo esgar que deu a Vergílio Ferreira o mote de Aparição). Mesmo quando afrontam o que os cerca, mesmo quando parecem sacudir o medo e se armam de uma coragem inusitada, ainda assim ensaiam o movimento que os leva ao precipício. Ensaiam a coreografia dos perdedores.
Já tínhamos lido quase tudo sobre clandestinidade e euforias e sobressaltos do PREC. Estudos, trabalho de arquivo, grandes frescos da efervescência dos dias. Já tínhamos visto quase tudo, lido quase tudo. Encontra este livro o rasgão, a fenda, a passagem secreta? Encontra. Pelo ângulo inverosímil, pelo desconcerto, pelo delírio que escapou ao noticiário. Ponho as coisas de outro modo: A Sombra – Um Estudo sobre a Clandestinidade Comunista , de Pacheco Pereira, explica e aprofunda com rigor e fiabilidade o processo da clandestinidade na história do PCP e dá capítulo largo ao M de Mergulhar. Mas ninguém, historiador ou ficcionista, nos dera até hoje a militante Luísa visitada durante a tortura na PIDE pelo próprio Álvaro Cunhal. Este romance de Hugo Goncalves está povoado de documentos que não poderemos encontrar em nenhuma Torre do Tombo, em nenhum arquivo da Soeiro Pereira Gomes, em nenhum cofre sobrevivente da António Maria Cardoso. São documentos só acessíveis ao pensamento alado, o autor tomou para lá chegar caminhos, nem sequer ínvios, irreais.
Dúvidas ideológicas atormentam a mulher agredida pela brutalidade de uma vizinhança também humilhada. Quando é levada ao confronto físico com uma vizinha defende-se com o salazar, rasga-lhe o couro cabeludo com o salazar, nome sussurrado do raspador de tigelas. Ela contará adiante como Salazar salvara uma comunista em apuros, em plena clandestinidade. Mergulhada em apuros. Raspando o medo. Vamos com ela ver o atlas que o avô Xavier abriu diante dos seus olhos em menina. Com o atlas do avô Xavier, o autor ganhou também a minha infância de leitor reformado… Mas já a mulher, ainda agora menina diante de um atlas, é mergulhada na tortura do sono, é levada às profundezas de um mar de sono agitado, vagas alterosas de sono, enquanto escutamos, parece que escutamos, o que soa na cabeça náufraga da mulher, os parágrafos que ela foi decorando do livro-senha do secretário geral do partido. Se fores preso, camarada.
Ela decorou e recupera como boias de salvação, durante a tortura do sono, como se resgatasse versos de um poema e os dissesse na fala clandestina dos seus pensamentos, as palavras do secretário geral que a visitará como um anjo salvador. Como alguém observa, talvez o autor, (a letra de um reformado não é fiável como a de um repórter no ativo) paira uma anemia da alma. Uma mulher acorda, não sabe se em Caxias, se na António Maria Cardoso. Acorda da tortura e não sabe se vacilou. Não sabe se falou, pondo assim em causa a superioridade moral dos comunistas. São inesquecíveis as páginas em que somos confrontados com uma alucinação libertadora. Cunhal vem conversar com Maria Luísa quando ela está em isolamento, no segredo. Cunhal é o segredo da mulher que não sabe se vacilou. É o anjo (talvez libertador, talvez castigador) de uma mulher torturada. A neta do projecionista do São Jorge vê no anjo que a visita a figura de Spartacus, a figura de Kirk Douglas, com traços fisionómicos que lhe fazem lembrar o rosto de Cunhal. O anjo pergunta se ela tem medo de morrer ali dentro, no segredo. E ela: “O senhor doutor não teve medo, quando se encontrava preso?”. E ele: “Trate-me por camarada, camarada® Hão de repetir-se as conversas com Cunhal, sobre as condições de luta enquanto o reformado ainda pouco acomodado à nova condição cuida de anotar que, depois da prisão, vai Maria Luísa de camioneta para a Guarda onde entra num táxi para São Pedro do Rio Seco. Vai dar o salto, claro. Mas ocorre ao recém-reformado que São Pedro de Rio Seco é a terra de Eduardo Lourenço e por isso anota: em que labirinto da saudade me queres meter, autor, camarada autor? Na Europa que se tornou, como dizia o mestre, “museu de si mesma”??
Nada disso; o recém-reformado julga ter identificado o método. O autor fará, ao longo das quase 500 páginas deste livro, um inventário dos modos de dizer de um tempo português em transe. Todo o jargão da política, nos partidos, nas organizações de ação direta, nas ruas, é aqui posto em montra. Mas os acontecimentos são abordados a partir do excesso e do desvio do olhar. O olhar que nos conduz por este tempo histórico é, quase sempre, delirante. Nunca o dia inicial inteiro e limpo nos fora revelado como neste livro a partir do olhar de Frederico quando este desagua sob o efeito de LSD num Terreiro do Paço cheio de soldados e de carros militares. Frederico há de cruzar-se com um veterano da imprensa estrangeira que vem ver a revolução e que lhe dá a receita: “Tens de escrever com os colhões, o coração e a cabeça”. São de evitar piscadelas de olho camilianas, a partir de Coração, Cabeça e Estômago. Nesse sentido, este é, talvez, um livro com o estômago descaído. Deixa o autor descair o estômago para que outra arma se alevante? Quer isso dizer que se come pouco neste livro? Na verdade, come-se muito. Mas em sentido lúbrico, por vezes exasperado.
Há neste livro páginas que poderiam ser guiões de programas de rádio. São a playlist de infernos pessoais. A banda sonora de Frederico é organizada por outro anjo intermitente que sobrevoa o seu pensamento errático. A todo o instante nos cruzamos com o avesso desprotegido de figuras cruas, extremadas. Como quando Calígula, o operacional de um grupo contra-revolucionário pergunta a Frederico, jornalista do República perdido do seu próprio lead, do seu próprio guião, devido a más companhias: “Quem é a tal Maria da Fonte para quem a gente faz o serviço?” Hugo Gonçalves leva-nos pelos anos de chumbo, pelos dias exaltantes, pelo avesso da alegria, pelo descaminho das ortodoxias, pela decomposição mais ou menos acelerada de tantas ilusões de uma outra vida possível tecendo a saga pouco exaltante de uma família dilacerada pelo tempo histórico e põe-se, e põe-nos a viver estas vidas. Escreviveu, diria, talvez, o Mia. Aqui não há heróis, mesmo se todos aqueles que se cruzam connosco nestas páginas em algum momento afrontam os deuses e a morte. Esse é o milagre deste livro, ora triste como uma banda sonora feita de chuva ácida, ora sublime como quando nos dá uma lição sobre política a partir do espanto de uma menina a quem o avô deu a ver o Ladrões de Bicicletas.
Obrigado, Hugo, por nos dares a reler, a rever, este tempo longo das nossas vidas como ele nunca nos tinha sido mostrado. Com banda sonora e tudo.»