Amanhã na Batalha Pensa em Mim: um ano sem Javier Marías

A 11 de setembro de 2022 desaparecia uma das figuras de maior relevo da literatura europeia contemporânea. A dias de completar 71 anos, Javier Marías deixava-nos, passando para uma dimensão que nos deixa mais sós. Foi o próprio a dizer em tempos que só os vivos e os mortos não partilham a linguagem. No entanto, Marías continua connosco através dos livros que deixou e que continuam a marcar a experiência dos leitores de uma forma única, graças a um universo distinto – de autor – construído ao longo de 16 romances, aos quais se juntam volumes de contos, de crónicas e de ensaios.

Nascido num contexto muito ligado à escrita, filho de pai escritor e filósofo e de mãe professora de Letras e tradutora, poder-se-á dizer que Javier Marías tinha o destino definido à partida. Como se o escritor tivesse sido vítima de uma conspiração, de um colete de forças inescapável como aquelas a que sujeitou várias das suas personagens literárias. Ao longo do seu percurso, Marías foi escritor, mas também professor em Oxford e na Universidade Complutense de Madrid, bem como tradutor. Seria, aliás, nessa condição que aceitaria receber um prémio, a única ocasião em que o fez: uma distinção pela tradução do clássico Tristram Shandy, de Laurence Sterne, corria o ano de 1979. Depois disso haveria muitos galardões, entre os quais o Prémio Literário Europeu, o Impac Dublin Literary Award ou o Femina Étranger, entre muitos outros, escapando-lhe o Nobel de Literatura. Uma circunstância que o coloca a par de outros esquecidos pela Academia como Joyce, Proust, Kafka ou Nabokov (que Marías, ironicamente, viria a traduzir).

 

O poeta escritor de thrillers

 

Javier Marías notabilizou-se então na tradução – verteu para espanhol os referidos Sterne e Nabokov, bem como Faulkner e Conrad –, antes de ganhar reputação sólida na ficção literária, vertente na qual se estrearia com os Os Domínios do Lobo em 1971. De então para cá, acumularam-se referências como a trilogia O Teu Rosto Amanhã, Coração Tão Branco ou Berta Isla, volumes nos quais Marías consolidaria um mundo muito próprio, explorando temas caros à grande literatura como a Identidade, a Memória, a Traição, o Tempo; a Crueldade, o Engano, a Deceção. E tantas vezes a auto deceção. Temas tratados de uma forma exigente, a espaços críptica, aliando ambientes de espionagem, de algum mistério, até, aos absurdos do quotidiano e ao abismo interior das personagens. Estas, naturalmente, também mantiveram ligações ao universo da escrita – encontramos professores universitários, editores, tradutores – e vivem em atmosferas de incerteza, de neblina existencial, que as leva a questionarem-se e a assumirem um desconforto que espelha o essencial da condição humana. Escritos com mão firme, e por vezes abraçando de forma vincada o universo do thriller, Marías estava menos interessado na resolução de casos de polícia, no encontrar de respostas concretas, do que no lançar de perguntas com uma densidade poética muito vincada. Fora dos livros, afirmou que a função do escritor não passava por aclarar situações, mas sim por explorar a escuridão. “Escrevo sobre temas que me parecem particularmente graves, perigosos, injustos ou estúpidos”. Mas fazia-o de uma forma desafiante, sem receitas fáceis para o leitor.

 

Idiossincrasias literárias

 

Com a sua morte há um ano, Javier Marías deixou vago o lugar de monarca de Redonda, reino semificcional (e literário) na zona das Caraíbas, apesar de ter distribuído ducados por outros escritores. Enquanto Xavier I, distribuiu benesses aristocráticas a figuras como A. S. Byatt, Arturo Pérez-Reverte, J. M. Coetzee ou António Lobo Antunes, Duque de Cocodrilo. Da mesma forma que abraçou este dever monárquico e vagamente dinástico, Marías dedicou muitas energias ao apoio do clube dos merengues, o Real Madrid, paixão que o levou a escrever com regularidade sobre o amaldiçoado mundo do futebol. Um mundo que tem apaixonado outros autores de relevo como Eduardo Galeano, Camilo José Cela ou Mario Benedetti. Entretanto, e porque tudo é Literatura no cosmos de Marías, os seus livros foram sendo batizados de acordo com versos de William Shakespeare, o autor que melhor terá tratado todas as paixões da alma – os assuntos de eleição do autor espanhol –, deixando pistas para o futuro. Mas não certezas absolutas. Por isso lemos no arranque de Dança e Sonho, segundo volume de O Teu Rosto Amanhã:

“Oxalá nunca ninguém nos pedisse nada, nem sequer nos perguntasse, nenhum conselho nem favor nem empréstimo, nem sequer o da atenção, oxalá os outros não nos pedissem que os ouvíssemos, os seus problemas míseros e os seus penosos conflitos tão idênticos aos nossos, as suas incompreensíveis dúvidas e as suas singelas histórias tantas vezes alteradas e já sempre escritas (não é muito vasta a gama do que se pode tentar contar(…)”

Palavra de Marías.

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