O novo e altamente premiado livro de Angie Kim, Quociente de Felicidade, não tarda em chegar à Topseller. A autora conversa com Erin Sheldon, membro do board da associação CommunicationFIRST, a única organização de direitos civis liderada por e para os estimados 5 milhões de crianças e adultos que, nos EUA, não podem depender apenas do discurso para ser ouvidos e compreendidos.
Sheldon: Acabei agora o teu novo livro e tenho a dizer que adorei. Leio muito, mas nunca tinha sentido tanto reconhecimento como quando li os teus dois. Senti-me tão representada e reconheci a experiência da minha própria família. (Tenho uma filha com síndrome de Angelman e autismo e outro filho autista que gosta de me relembrar dos meus traços de neurodivergente, porque o sou de muitas maneiras.) Foi catártico ter alguém a escrever sobre isso. Honestidade brutal e bonita. E um mistério fascinante.
Kim: Nem consigo dizer-te o quão feliz fico. Tenho vindo a partilhar esta história com pessoas na comunidade do síndrome de Angelman e em comunidades não-verbais, nos últimos meses e, ter feedback como o teu – que o meu livro é verdadeiro à tua experiência – é muito importante para mim.
Quando li que uma autora estava a escrever sobre uma personagem com Angelman, fiquei receosa. O tropo de “Angel” está tão difundida. Mas tu claramente não cais nesse tropo. Há muita complexidade e humanismo nas tuas personagens. São tão únicas e reais. Como é que se quer vieste a escrever sobre o síndrome de Angelman? Quanto é que já sabias?
Trabalhei nesta história durante mais de dez anos. Um dos primeiros contos que escrevi e foi publicado (em 2013) é uma história de realismo mágico sobre um par de gémeos na Coreia, Mia e John, a tentar encontrar a voz do seu irmão não-verbal num cemitério, com um estetoscópio assombrado. No livro, isto tornou-se no incidente do cemitério. Quando escrevi essa história, achava que o irmão, Eugene, era autista, tal como a sua família na história acha, inicialmente. Não sabia nada sobre Angelman na altura, mas sempre vi o Eugene, na minha cabeça, com um sorriso angelical, mesmo quando estava a guinchar, que vim a descobrir que é a dor da sobrecarga sensorial.
Há muitos anos, estava a pesquisar sobre Soma Mukhopadhyay, um terapeuta de pessoas não-verbais que estavam a aprender a comunicar através de um quadro de letras. Vi no seu website que um dos membros do board da sua organização era pai de uma criança com síndrome de Angelman. Pensei, ‘o quê? O que é isto?’ Pesquisei e até me arrepiei, porque tudo o que li refletia o que eu tinha visto em Eugene, na minha cabeça, durante uma década – o sorriso, a atração pela água, problemas motores, não-verbal, uma falha cognitiva grave, diagnosticado como autismo, erradamente. Ligo muito ao kismet, destino, esse tipo de coisas, especialmente no que toca à escrita, e percebi logo que o Eugene tinha síndrome de Angelman e isso teria um papel importante na história da família.
O sorriso de Angelman recebe muita atenção na literatura, mas há muitos mal-entendidos e confunde as pessoas. As crianças sorriem para obter atenção e interação social, mas também por ansiedade e desconforto e dor, por vezes. Foi por isso que puseste as ideias do pai sobre felicidade e qualidade de vida na história?
Na realidade, as experiências do pai acerca da felicidade vieram primeiro, antes de tudo o resto, até mesmo do mistério de ele ter desaparecido. Sempre vi esta família como um grupo peculiar, cativante e filosófico. (Tanto a Mia como o pai pontificam muito na história.) Licenciei-me em filosofia e sempre tive um fascínio por teorias e estudos sobre qualidade de vida e os fatores que determinam a felicidade. Acho que, provavelmente, isso vem das minhas experiências enquanto imigrante – tendo sido muito pobre, mas muito feliz na Coreia e, depois, completamente miserável nos meus primeiros anos na América, ainda que a minha família tivesse muito melhores condições, objetivamente. Mesmo que sempre tenha visto o Eugene com o seu sorriso, a rir-se muito, nunca equei isso com felicidade, porque sabia que ele sorria por tantas outras razões, como disseste – embaraço e vergonha, para criar ligações e se juntar a outros socialmente, sofrimento.
Foi só muito mais tarde, no processo de escrita – quando li o debate sobre se “curas” genéticas para a síndrome de Angelman deviam ser levadas a cabo, visto que miúdos com Angelman parecem muito mais felizes que os seus pares – que pensei, espera! Estou a escrever sobre este pai, que é obcecado com tentar maximizar a felicidade, e o seu filho tem algo a que chamam “síndrome de felicidade”: um sorriso, um marcador objetivo de felicidade, mas talvez ele esteja em sofrimento. Isso foi um avanço enorme na história, para mim. Escrevi furiosamente durante umas sete horas sem parar, depois disso. Tudo se agregou – o pai desaparecido, as experiências de felicidade que o pai andava a fazer e as dificuldades de Eugene em comunicar.
A maneira como escreveste este livro do ponto de vista da irmã é incrível. É engraçado porque, no primeiro capítulo, não tinha a certeza se ia gostar da Mia – ela tem cá uma atitude! – mas ela entranhou-se em mim e é tão engraçada e divertida. Acho que fizeste um trabalho fenomenal a captar a dinâmica de irmãos. O incidente do bolo, no início do livro, é um clássico, tanto os episódios de raiva que acontecem a miúdos como Eugene, naquela idade, e o ódio de Mia pelo seu irmão, naquele momento, o comentário que faz sobre como a mãe o trata como se ele não tivesse livre-arbítrio. Pensei, oh, uau, disseste-o em voz alta, as coisas vergonhosas que pensamos, tal como fizeste em Miracle Creek, no que toca às mães. Adorei isso. Sou a mais velha de seis irmãos, cuidei dos meus cinco irmãos, tal como a Mia cuida, e isso é tão real e tão honesto. Disseste que consideras este livro o verso da moeda de Miracle Creek e eu percebo mesmo isso. Porque esse livro foca-se na perspetiva dos pais, o sacrifício extremo da parentalidade.
Exatamente, enquanto que O Quociente de Felicidade se foca nos altos e baixos dos irmãos e, mais diretametente, no percurso de uma criança não-verbal. Acho que sou obcecada por dinâmica de irmãos porque sou filha única e cresci a querer muito ter irmãos e, agora que tenho três filhos, sou fascinada pela maneira como eles interagem, todas as facetas da sua relação. Fico tão grata por gostares da voz da Mia, porque humor é importante para mim – adoro escrever com humor, é um elemento grande dos meus contos e ensaios – mas não foi algo muito prevalente em Miracle Creek.
Acho que o elemento da comunicação para o Eugene é uma história tão importante de partilhar. As dificuldades e frustrações da criança e da família, não ser capaz de exprimir as suas ideias, ter o rótulo de ‘baixas capacidades’ porque não conseguem ou não querem apontar para imagens da comida ou brinquedo que querem. Estas crianças são traumatizadas.
Isso, para mim, é o fulcro da história. Se há uma coisa que espero que as pessoas retirem do Quociente de Felicidade é que questionem a presunção que a maior parte das pessoas tem de que fluência oral equivale a inteligência. É um problema muito importante para mim, não só porque tenho um filho que teve problemas de fluência e atrasos no discurso, enquanto uma criança com apraxia, dispraxia e surdez unilateral, mas também porque, quando vim para a América, aos 11 anos, fui vítima de bullying e sentia-me ignorante por não falar inglês. Eu sei que isto é apenas 1/1000 da dor de não conseguir comunicar em língua nenhuma, que as pessoas não-verbais sentem antes de aprenderem a comunicar, mas foi muito debilitador para mim e algo que ficou comigo até muito depois de me tornar fluente em inglês.
Repito, achei a história tão cativante. Tão poderosa. Agarraste-me desde o início e disseste coisas que tinham mesmo de ser ditas. E eu adorei.
A pesquisa mais importante que fiz para este livro, sem qualquer dúvida, veio das histórias reais de pessoas como tu e não podia estar mais agradecida.