svetlana alexievich

As mil e uma vozes de Svetlana Alexievich, Prémio Nobel de Literatura

«Quando a Academia Sueca anunciou o nome da autora bielorrussa, a primeira reação foi dizer que se atribuíra o prémio, coisa inédita, a um jornalista. Svetlana Alexievich não entendeu. Nunca achou que o que escreve fosse jornalismo.» Paulo Moura no prefácio de Vozes de Chernobyl: História de Um Desastre Nuclear
As mil e uma vozes de Svetlana Alexievich

Svetlana Alexievich criou um género literário de não-ficção que é inteiramente seu. Os seus livros são conhecidos como “romances de vozes” e, ao lê-los, é fácil entender porquê. Juntos, os relatos na primeira pessoa transformam-se num coro de vozes individuais. Alguns assemelham-se a confissões no divã do psicólogo. Alexievich levou muitos anos a aprimorar o estilo e a entrevistar os protagonistas destas histórias. Durante esse tempo, testemunhou solitariamente os mais incríveis relatos, descrevendo-se a si própria como “um ouvido grande”.

«Quero falar… Falar! Desafogarme! Até que enfim, alguém quer ouvirnos. Ficámos caladas tantos anos, mesmo em casa. Dezenas de anos. No primeiro ano depois de regressar da guerra, falava e falava. Ninguém me ouvia. Caleime… Ainda bem que veio. Estive este tempo todo à espera de alguém, sabia que alguém havia de aparecer. Devia aparecer. Eu era muito nova. Tão nova. É pena.» (excerto de A Guerra Não Tem Rosto de Mulher)

A proeza, que lhe valeu o mais alto galardão literário, combina essa capacidade de ouvir o outro com uma afinadíssima curadoria, sem oportunismo, sem elementos narrativos desnecessários, sem se sobrepor nunca ao sofrimento alheio. Não pretende ser historiadora. O seu intuito – recorrendo uma vez mais a uma descrição da própria – é “escrever a história da alma humana”. Disse-o numa entrevista ao Expresso, em 2015, onde é citada uma outra frase sua. Na altura, descrevia-se como “uma escritora, uma repórter, uma socióloga, uma psicóloga.” Quase parece fácil. Quase.

 

Novas edições da Nobel de Literatura 2015 

Por ocasião da vinda da autora ao Fólio – Festival Literário Internacional de Óbidos, a Elsinore irá reeditar todos os seus livros em catálogo. Destacamos aqueles que têm novas edições até ao final do ano.

A Guerra não Tem Rosto de Mulher

«Os homens receavam que as mulheres pudessem contar uma guerra diferente.» Svetlana Alexievich, A Guerra Não Tem Rosto de Mulher

A marcante obra de estreia de Svetlana Alexievich foi originalmente publicada em 1985, depois de quatro anos de pesquisa e entrevistas. O livro apresenta os testemunhos de mais de duzentas jovens russas que lutaram no Exército Vermelho, passando de filhas, mães, irmãs e noivas a atiradoras, condutoras de tanques ou enfermeiras em hospitais de campanha. Esta edição corresponde ao texto fixado em 2002, quando a autora reescreveu o livro e incluiu novos excertos com uma força que, até então, a censura não lhe tinha permitido mostrar.

« Da conversa com o censor:

— Mas quem é que vai combater depois de um livro destes? A senhora humilha a mulher com um naturalismo primitivo. A mulher heroína. Faz dela uma mulher comum. Uma fêmea. Mas as nossas mulheres são santas.»

 

 

Vozes de Chernobyl: História de Um Desastre Nuclear

Naquela que é a sua obra mais aclamada, a autora apresenta com notável sensibilidade os testemunhos – resultantes de mais de quinhentas entrevistas – de cidadãos comuns, bombeiros, médicos e militares que sentiram na pele as violentas consequências da tragédia que as autoridades soviéticas tentaram esconder da população e da comunidade internacional.

«Nos primeiros dias a pergunta principal era: de quem é a culpa? Era preciso um culpado… Depois, quando soubemos mais, começámos a pensar: o que fazer? Como nos vamos salvar?»

«Nos primeiros dias após o acidente, desapareceram das bibliotecas os livros sobre radiação, sobre Hiroxima e Nagasáqui, mesmo sobre raios X. Correu o boato de que isto fora feito por ordem das autoridades, “para não semear o pânico”. Para a nossa própria tranquilidade.»

«Nos primeiros dias… As sensações eram mistas… Lembrome de duas mais fortes: a sensação de medo e a sensação de ressentimento. Aconteceu tudo, e não há nenhuma informação: as autoridades remeteramse ao silêncio, os médicos não dizem nada. Não há respostas. As autoridades distritais esperavam instruções das autoridades regionais, as regionais esperavam instruções de Minsk, e Minsk esperava instruções de Moscovo.»

«Nos primeiros dias os nossos filhos eram evacuados de noite para que menos gente pudesse vêlos. As autoridades ocultavam essa desgraça, dissimulavamna. Mas as pessoas chegavam a saber na mesma. Vinham ter com os nossos autocarros na estrada, traziamnos frascos de leite, pãezinhos acabados de fazer. Como na guerra… Será comparável com outra coisa qualquer?»

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