La Plata, Argentina, 1921. Nesse ano e nesse lugar nascia uma escritora condenada a um reconhecimento literário tardio, apesar de uma vida cheia e de um percurso recheado de livros, entre poesia, ficção, contos, ensaios. Não fosse uma decisão de júri num concurso, é possível que o nome Aurora Venturini dissesse tanto ao mundo dos leitores como outros nomes de autores nascidos no mesmo ano: Farley Mowat, James Blish ou Lucette Finas (perdoem-nos, se cometemos alguma injustiça). Claro, também nesse ano nasceu a extraordinariamente popular Patricia Highsmith, mas neste contexto falamos de Aurora, autora que demorou muito a atrair holofotes sobre si, apontados após a escrita de As Primas, romance que explora um dos temas – ou O Tema – essencial na sua escrita: a Família. Degenerada, complexa, por vezes monstruosa.
De Evita a Beauvoir, passando por Borges
Aurora Venturini viveu rodeada de mitos que gostava de alimentar. Das relações com o oculto à compulsão incontrolável pela escrita à mão ou à máquina, passando pela preferência por aranhas na hora de escolher um animal de estimação, Aurora fez crescer um culto. Que tanto teve a ver com estas peculiaridades como com o seu círculo de relações, na Argentina natal e fora dela. Depois de ter recebido das mãos de Jorge Luis Borges um prémio revelação com o seu livro de poesia El Solitario, Aurora tornou-se amiga do astro argentino das letras, bem como de Victoria Ocampo, escritora, editora e irmã da muito considerada autora Silvina Ocampo. Depois de se ter formado em Filosofia e Ciências da Educação, e graças ao seu trabalho no Instituto de Psicología y Reeducación del Menor, tornou-se também amiga íntima de Eva Péron, mulher do chefe de estado Juan Carlos Perón (figura que daria origem ao adjetivo peronista), circunstância que a levou ao exílio depois do golpe militar de 1955, que depôs o líder populista, ofuscando também a estrela de Evita. Na sequência do golpe, Aurora Venturini partiria o exílio em França, país onde viveria 25 anos, chegando a fazer parte do círculo de intelectuais existencialistas, no qual campeavam figuras como Simone de Beauvoir, Jean-Paul Sartre e Albert Camus, e privando na boémia parisiense com Juliette Gréco ou Eugène Ionesco. À época, acabaria por traduzir autores como Ducasse, Lautréamont e Rimbaud, ocupação que também lhe granjearia prémios. Mas a consagração literária, de moto próprio, chegaria mais tarde.
Prémio Nueva Novela
A 4 de dezembro de 2007, o júri composto por Juan Ignacio Boido, Juan Forn, Rodrigo Fresán, Alan Pauls, Sandra Russo, Guillermo Saccomanno e Juan Sasturain atribuiu o Prémio Nueva Novela de Página/12 y Banco Provincia à obra Las primas, apresentada sob o pseudónimo de Beatriz Portinari.
Foi este galardão, atribuído em 2007, quando Aurora Venturini já tinha chegado aos 85 anos, que a catapultou para a fama literária. Entretanto regressada à Argentina, Aurora decidiu tentar a sua sorte no concurso lançado pelo popular jornal, acabando por criar uma forte impressão no júri do concurso e, mais tarde, nos leitores.
No prólogo da edição portuguesa de As Primas (Alfaguara), a também escritora argentina Mariana Enríquez, que trabalhou na pré-seleção de originais deste prémio, diz o seguinte: “O encontro com a narradora de As Primas foi impactante. A sintaxe radical que evitava a pontuação porque a «cansava», a brutalidade na exposição das misérias das personagens, a inusitada falta de piedade para descrever uma família. «Não éramos comuns, ou seja, não éramos normais», diz Yuna, aquela que conta a história, uma jovem com problemas cognitivos (Aurora jamais usaria um termo tão correto: diria que Yuna é deficiente)”.
Foi esta crueza, misturada com uma profunda originalidade, que conquistou os responsáveis pela atribuição do prémio, permitindo mostrar a uma faixa muito mais alargada de leitores o talento e o universo de Aurora Venturini, que tinha ficado quase como que em suspenso, quase subterrâneo, à espera de uma erupção tão violenta como bela. Se é que podemos encontrar beleza no horror (em Literatura, cremos que sim).
Quando tomou conhecimento da decisão, Aurora proclamou “finalmente, um júri honesto”. Com a mesma frontalidade com que confronta as suas personagens.