Os caminhos de um escritor que se tornou num mestre da narrativa breve
No Outono de 1980, em Berkeley, Universidade da Califórnia, durante dois meses e perante uma plateia de jovens estudantes cada vez mais numerosa e entusiasta, Julio Cortázar conduziu às quintas-feiras um vasto diálogo sobre a criação literária e a sua experiência de escritor. Este diálogo foi depois reunido no livro Aulas de Literatura – Berkeley, 1980. Numa altura em que chega às livrarias portuguesas o primeiro de dois volumes dos contos completos de Cortázar, Contos Completos 1, partilhamos algumas luzes que o autor lançou sobre o seu próprio percurso enquanto contista.
«Escrevi sempre sem saber muito bem porque o fazia, impelido um tanto pela sorte, por uma série de acasos: as coisas chegam-me como um pássaro pode passar pela janela. Na Europa, continuei a escrever contos de tipo estetizante e muito imaginativos, praticamente todos de tema fantástico. Sem dar por isso, comecei a tratar de temas que se desprenderam desse primeiro momento do meu trabalho. Nesses anos escrevi um conto muito longo, talvez o mais longo que escrevi, “O Perseguidor” — do qual falaremos mais detalhadamente quando for oportuno —, que em si mesmo não tem nada de fantástico, mas que tem, em contrapartida, qualquer coisa que acabaria por revelar-se importante para mim: uma presença humana, uma personagem de carne e osso, um músico de jazz que sofre, sonha, luta por expressar-se e sucumbe esmagado por um destino que o perseguiu durante toda a sua vida (aqueles que o leram sabem que estou a falar de Charlie Parker, que no conto se chama Johnny Carter). Quando acabei de escrever esse conto e fui o seu primeiro leitor, percebi que acabara de abandonar, de certo modo, uma órbita e estava a tentar entrar noutra. A personagem convertera-se, então, no centro dos meus interesses, ao passo que nos contos que tinha escrito em Buenos Aires as personagens estavam ao serviço do fantástico, eram figuras criadas para que o fantástico tivesse possibilidade de irromper. Embora pudesse sentir simpatia ou carinho por determinadas personagens desses contos, era tudo muito relativo: o que realmente me interessava era o mecanismo do conto, os seus elementos afinal estéticos, a sua combinação literária com tudo quanto pode ter de belo, de maravilhoso e de positivo. Na grande solidão em que vivia em Paris, foi como se começasse a descobrir subitamente um meu semelhante na figura de Johnny Carter, esse músico negro perseguido pela desgraça, cujos balbucios, monólogos e intentos ia inventando ao longo do conto.
Este primeiro contacto com um meu semelhante — julgo que tenho o direito de empregar esse termo —, essa primeira ponte estendida diretamente de um homem a outro, de um homem a um conjunto de personagens, levou-me, nesses anos, a interessar-me cada vez mais pelos mecanismos psicológicos que podem aparecer nos contos e nos romances, por explorar, e avançar nesse território — que é, ao fim e ao cabo, o mais fascinante da literatura — em que a inteligência e a sensibilidade de um ser humano se combinam e determinam a sua conduta, todas as suas movimentações, todas as suas relações e inter-relações, os seus dramas de vida, de amor, de morte, o seu destino — a sua história, numa palavra.»
Aulas de Literatura – Berkeley, 1980, de Julio Cortázar, com tradução de Miguel Filipe Mochila (Cavalo de Ferro, 2016)
Numa iniciativa editorial inédita no nosso país, reúne-se pela primeira vez a totalidade dos contos de Julio Cortázar. Contos Completos 1 inclui famosos títulos como Bestiário, As Armas Secretas ou Histórias de Cronópios e de Famas.