O escritor espanhol David Cirici, professor de Língua e Literatura, ficou feliz com a edição portuguesa de Musgo, narrativa premiada com selo da Fábula e ilustrações de Catarina França. Não é por acaso que o livro chega ao mercado num momento em que assistimos a diferentes guerras. É um livro atual e necessário. Ele traz uma nova perspetiva do impacto individual destes conflitos e termina com uma nota de esperança. Falámos com o autor, admirador de Hachiko (também publicado pela Fábula), que quis contar uma história terna e emocionante, mas com episódios divertidos, sobre perda e reconstrução. E escolheu a perspetiva de um cão, o seu olhar único, «sem rosto ou género».
De onde surgiu a ideia de escrever esta história e de ter um cão como narrador?
A ideia de um narrador canino surgiu após refletir sobre algo que me chamou a atenção. Quatro anos antes de escrever esta história, assisti a Hachiko: Amigo para Sempre, um remake do filme japonês Hachiko Monogatari, de 1987. Nunca chorei tanto a ver um filme. E eu não sou propriamente uma criança. O que se passou? A questão é que tentei analisar porque me senti tão emocionado e cheguei à conclusão de que é mais fácil simpatizarmos com os sentimentos dos cães do que com os das pessoas, talvez porque eles nos chegam de um lugar de inocência. Os cães não se parecem com ninguém. Pouco nos importamos com os seus rostos ou com o seu género. São sentimentos com patas. O que eu queria contar era uma história de perda e solidão. E eu achava que um cão era muito melhor do que um adulto. Talvez tivesse funcionado com uma criança, mas um cão era mais único, mais original.
Acreditamos que esta obra pode ser lida com prazer por jovens e adultos e tem muitas camadas. Sendo um livro emocionante e terno, não deixa de ter crítica e reflexão social. Pensou num público-alvo enquanto escrevia ou não se preocupou com isso?
Para mim, Musgo é um livro para adultos que as crianças podem ler. É assim que entendo a literatura infantil. Quando eu era criança, líamos Dickens! Adoraria publicá-lo numa coleção não especificamente infantil.
Musgo foi distinguido com prémios e boas críticas, foi traduzido para várias línguas e foi adaptado para outras formas de arte. O que pensa ser a chave deste sucesso?
O compromisso com o que conto. Na verdade, Musgo é uma metáfora. Através de um cão, consegui explicar uma experiência pessoal de solidão e reconstrução.
A temática da guerra nem sempre é fácil de abordar para jovens leitores. Neste caso, contam-se episódios muito tristes, mas finaliza de forma muito esperançosa. Num momento em que assistimos a tantos conflitos em vários pontos do mundo, o que espera que este livro traga para os leitores portugueses?
Em Musgo, a guerra é narrada por um cão. E ele não a compreende, não sabe o que se está a passar, nem sabe o que é uma espingarda. A guerra também é difícil de compreender pelos humanos. É irracional. É o nosso lado mais negro. Basta compreender que a guerra é morte e tristeza.
A ilustradora Catarina França gostou muito do seu texto e ficou encantada por ilustrar o livro. Enquanto editora, estamos muito felizes com esta edição. O que sentiu ao receber exemplares da edição portuguesa com ilustrações completamente novas e originais?
A Catarina França fez um trabalho maravilhoso! É realmente a versão mais ternurenta e poética de todas as que foram publicadas até agora. Também gosto da edição russa, a mais expressionista e sombria de todas, e das edições italiana e grega, que têm um pendor mais humorístico (ambas do mesmo artista, Federico Apel). O facto é que Musgo é um livro dramático, mas também humorístico e, acima de tudo, terno. Parabéns pela poesia desta versão gráfica, que evita ilustrar os momentos dramáticos e, em vez disso, se deleita com os momentos mais ternos e felizes.
Em Portugal, como em muitos outros países, debate-se o uso excessivo de tecnologias e redes sociais e como isso é prejudicial a um desenvolvimento emocional saudável. Acredita que os livros e a leitura são o melhor antídoto contra isso?
O que precisamos de recuperar, antes de ler, é a conversa, as brincadeiras a sério, a improvisação… e também o tédio, que pode ser altamente criativo. Em suma: recuperar a realidade e recuperar o uso das palavras, o prazer de falar e de ouvir. Isto também se aplica aos adultos. Só assim, num mundo mais lento, num mundo onde apreciamos o que nos é dito e como é dito, e quando já não esperamos uma resposta imediata dos nossos telemóveis, é possível ler e gostar de ler.