Se me fizessem esta pergunta há vinte e tal anos, quando publiquei o meu primeiro romance, eu teria respondido, talvez por ingenuidade ou pelo furor da juventude, que a escrita pode mudar o mundo. Hoje, homem de meia-idade, contemporâneo da era da desinformação, sei que é um luxo escrever para entender alguma coisa do mundo e deste encargo, às vezes terrível, às vezes maravilhoso, que é estar vivo.
Sei que recebi este prémio por ser escritor. Mas quero falar-vos enquanto leitor. Reparem: o livro é uma estrondosa peça de civilização. Nele convergem quatro magníficas criações.
Primeiro, a linguagem, essa dádiva misteriosa, ainda hoje não totalmente compreendida pela ciência. Depois, a escrita, que tanto produz versos de amor para aliviar um coração apaixonado, como ensina o cirurgião a transplantar esse mesmo coração quando, depois de partido, ele se entope de vinho, cigarros e desespero. Em terceiro lugar, a prensa — essa tecnologia antiga, mas ainda tão pertinente. (Obrigado, Sr. Gutenberg.) E, por fim, a imaginação do leitor — porque um livro pode ser escrito pelo autor, mas só ganha vida na cabeça de quem o lê.
O livro, repito, é uma peça de civilização. Porque contém beleza. Porque permite viajar no tempo, no espaço e na cabeça dos outros. Porque lança luz sobre as trevas. E porque, como costumo dizer nas escolas onde às vezes me convidam para falar aos adolescentes, ler torna mais difícil que nos comam por parvos, numa época em que se confunde desinformação com informação, informação com conhecimento, e conhecimento com sabedoria.
O livro é um abrigo contra o ruído do mundo. Contra a algazarra da zanga e do medo, hoje disseminados nos ecrãs por milhões de anónimos — e por todos os líderes messiânicos com ambições a tiranos. O livro é uma espécie de capanga que expulsa da nossa cabeça esses inquilinos problemáticos, aos gritos nas redes sociais e nas televisões.
De certa maneira — sem precisarmos de ser revolucionários —, ler um livro é hoje um ato de resistência contra essa zanga e esse medo tão danosos para a liberdade e para a democracia que começámos a construir no dia 25 de Abril de 1974.
(Sim, estes são os melhores cinquenta e um anos da nossa História.)
E digo começámos a construir, porque a democracia não chegou em modelo de fábrica, pronta a ligar à corrente. Revolução, o livro que recebeu o Prémio Fernando Namora, fala, entre muitas outras coisas, do processo turbulento e tragicómico dessa construção.
Ao contrário das falsas promessas do totalitarismo, a democracia exige compromissos em detrimento das imposições. Nunca será um trabalho acabado, mas uma luta diária. Não é um destino, mas uma viagem sem conclusão. Nunca teremos a democracia pela qual esperávamos, mas nem por isso devemos desistir de a procurar.
Nunca poderemos ser inteiramente livres, mas, em menos de nada, podemos perder a liberdade que temos.
No livro Revolução, conto uma história muito conhecida, de quando Salgueiro Maia enfrentou sozinho um carro de combate, com duas granadas no bolso, e de como estava disposto a rebentá-las para que a revolução triunfasse. Mas na pesquisa para o livro descobri a outra face dessa história de heroísmo. Numa entrevista que deu a Fernando Assis Pacheco, já nos anos 80, Salgueiro Maia alertava para uma fotografia de Eduardo Gageiro, também muito conhecida, tirada segundos após esse famoso confronto das granadas — uma fotografia em que Salgueiro Maia aparece a morder o lábio inferior, um pouco afastado dos soldados que celebram já a vitória.
«Sabe porque estava a morder o lábio? Para não chorar», explicou Salgueiro Maia.
Imagino os seus nervos, a tensão, o medo, o alívio, a humanidade contida naquele momento. Porque é preciso tanta coragem para não arredar pé da frente de um tanque, com duas granadas no bolso, como para assumir publicamente tamanha vulnerabilidade.
O acaso até pode ser a grande força motriz do Universo, mas, sem caráter, a vida não vale nada.
O que quero dizer é que, num mundo onde o sumiço, a olhos vistos, da empatia e da civilidade precede, como já nos avisaram outros antes de nós, a destruição da liberdade e da democracia, ser sincero e bondoso não é um sinal de fraqueza. Um povo não precisa de ser cruel para ser forte. Sabem onde é que aprendi isto? Nos livros.
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O discurso de Hugo Gonçalves ao receber o Prémio Literário Fernando Namora pelo seu romance Revolução.






