O álbum Boleia valeu-lhe o Prémio Jabuti (na categoria de Ilustração), o mais importante galardão literário do Brasil. Está publicado em Portugal pela Fábula, que também lançou AAAHHH!, um berro surpreendente até para o próprio escritor, como adiante se verá. Diretamente de Blumenau, no sul do Brasil, Guilherme Karsten respondeu às nossas perguntas sobre o seu percurso enquanto escritor e ilustrador na paisagem da literatura infantojuvenil contemporânea.
Os prémios são sempre reconhecimento de qualidade. Qual é o efeito que têm na sua carreira e em si enquanto autor?
Minha carreira foi construída em volta dos prêmios que recebi, pois, foi por conta deles que editores me descobriram, se interessaram e publicaram meus livros. Além da publicação em si, eles dão visibilidade e ajudam a despertar o interesse de leitores, livrarias, escolas etc., e meu nome acaba chegando a lugares onde não conseguiria chegar através de meus contatos ou redes sociais. Devo minha carreira aos prêmios recebidos.
Os seus livros têm despertado interesse de vários editores em todo o mundo. O que sentiu quando soube que ia ser publicado em Portugal?
Tenho uma relação muito interessante com Portugal, a primeira vez que escrevi um livro foi para um concurso promovido por uma editora portuguesa. Era o Boleia, que escrevi em formas de rima. O problema é que, intitulei o livro de Carona (título aqui no Brasil), e esta palavra não existia em Portugal, e, através de um amigo, que mora em Lisboa, conheci a palavra boleia, e isso me fez reescrever os textos para rimar com a nova expressão. E tudo num prazo apertadíssimo. Depois desse concurso, fui descoberto pelo mundo literário.
Boleia foi publicado em muitas línguas, o que me deixou muito feliz, mas ao saber que seria editado em Portugal, me fez reviver toda a história do surgimento do livro. Tenho um carinho especial por esse momento da minha vida e Portugal faz parte dessa bela memória.
A edição portuguesa dos seus livros obrigou a uma adaptação do texto. Como correu este trabalho?
(Eu não lembro como ocorreu este processo, mas vou tentar responder) O livro já havia sido escrito pensando no concurso português, mas, como algumas palavras e expressões mudam, algumas partes do texto foram adaptadas para melhor aceitação do público. O contexto não mudou nada, a história permanece a mesma, é dessa forma que se faz uma boa adequação.
Como é o seu processo criativo? O que surge primeiro, as palavras ou as imagens?
Não sei exatamente de onde surgem as ideias, às vezes por ver alguma imagem, que esconde alguma ideia de roteiro, às vezes por vivências em família, no dia a dia, ou lendo ou assistindo algum filme. Os plots simplesmente aparecem e eu vou tentando encontrar caminhos para criar um fim interessante, depois um ponto alto, as várias cenas etc., tudo isso ainda na minha cabeça. Se a história faz sentido, escrevo no arquivo de notas, crio um storyboard, divido as cenas e anoto as ideias do roteiro. Quando tudo estiver pronto, parto para a primeira arte, que vai reunir o conceito e a proposta visual do livro. Então, resumindo, primeiro surge a imagem na minha cabeça, depois o texto e depois a imagem no computador ou papel.
Quão diferente foi a criação do Boleia e do AAAHHH!?
O Boleia foi minha primeira história criada, e foi diferente de todos os outros livros que tenho hoje. Lembro que estava lendo muito, livros infantis e livros teóricos, anotando todas as minhas ideias de texto, botando a criatividade pra funcionar. E, certo dia, durante o meu banho (onde penso muito nas minhas ideias) a base do roteiro simplesmente apareceu. Anotei tudo (depois de me secar e me vestir, claro), e preenchi os espaços que faltavam na história.
O Aaahhh! surgiu a partir de uma experiência no meu condomínio. Certa noite, após voltar do mercado, ouvi uma criança berrando, reclamando. Achei uma falta de respeito por conta do horário e pensei o quanto os pais dessa criança eram irresponsáveis por deixar ela gritar tanto.
Comecei a subir as escadas e notei que o barulho aumentava. Ao chegar perto do meu apartamento, o som era mais alto. Ao abrir a porta, minha esposa me disse: “faça alguma coisa, teu filho está no banheiro berrando porque não quer tomar banho!” E eu fiz, escrevi uma história.
Quais são as suas principais referências e inspirações?
A cada entrevista que dou, mudo as minhas referências, mas notei que faço isso por descobrir novas inspirações todo dia, faz parte da descoberta de novos artistas. Mas de forma geral, me interesso muito pelos livros de Roald Dahl. Sua criatividade e o nonsense de suas histórias me forçam a olhar sempre além. O mesmo acontece com os filmes e sketches dos Monty Python, me divirto demais com eles. Também poderia adicionar o Mac Barnett e o meu amigo Ilan Brenman. Agora, falando de imagens, nada se compara aos artistas contemporâneos portugueses: André Letria, Catarina Sobral, Planeta Tangerina. Além destes, gosto muito da Beatrice Alemagna, Oliver Jeffers, Jon Klassen, e muitos mais.
Faz livros para o público infantil. Surpreende-o que os adultos também apreciem os seus livros?
Não me surpreendo, pois o livro foi escrito e ilustrado por um adulto que gosta de humor. Não faço o livro só pensando nas crianças, apesar de ter a noção de que meu foco é o público infantil, faço porque me divirto. Assim, muitos adultos se reconhecem nas histórias, mas mesmo assim, alguns não reconhecem a qualidade da narrativa, esqueceram a imaginação pelo caminho.
O lado desconcertante e surpreendente dos seus livros pode ser uma mais-valia em contexto escolar? De que forma?
É uma pergunta interessante pois me remete à minha infância. Não fui um bom leitor, achava muito chato ler livros e, acho isso porque não aprendi a ler como forma de diversão, mas como uma maneira de aprender alguma moral ou princípios. Minhas histórias não tem o interesse nem a proposta de ensinarem algo, passar alguma ideia, mas é puro entretenimento. Aliás, penso sempre nas crianças lendo os livros com os amigos, pais, avós ou professores ao redor, onde apresentam suas as observações e criam boas conversas. Um aprendendo com o outro.
Esta é uma forma de desenvolver a leitura na escola, um momento de relaxamento, risos e discussões. Ou nada disso, apenas para desenvolver a imaginação.