László Krasznahorkai, apelidado de «mestre húngaro do Apocalipse» por Susan Sontag, marcou 2025 com a receção do Prémio Nobel de Literatura «pela sua obra envolvente e visionária que, em pleno terror apocalíptico, reafirma o poder da arte». Entre o anúncio do prémio e a cerimónia de entrega, ponderou partilhar algumas reflexões sobre o tema da «esperança». Absolutamente esgotada a esperança que guardava em si, discursou em vez disso sobre anjos, dignidade humana e rebeldia numa comunicação da qual partilhamos alguns excertos.
I — Dos anjos
«Ando de um lado para o outro e penso sobre anjos, neste preciso momento estou às voltas para um lado e para o outro, não acreditem no que os vossos olhos veem — pode parecer que estou aqui parado a falar ao microfone, mas não estou, na verdade estou a dar voltas, de um lado para o outro, de volta ao ponto de partida e assim sucessivamente, às voltas e às voltas, e sim, estou a pensar sobre anjos; anjos, e posso desde já revelar-vos que são anjos de um novo tipo, anjos que não têm asas […] eles não nos oferecem nada, não há nenhuma espécie de frase ondulando em seu redor, não há nenhuma luz com a qual possam sussurrar ao nosso ouvido, não dizem uma única palavra, como se estivessem mudos, apenas ficam ali e olham para nós, procuram o nosso olhar, e nessa procura há um apelo para que nós olhemos nos seus olhos […] subitamente acontecerá a todos os solitários, cansados, tristes e sensíveis, como me sucede agora — se me permitem incluir-me entre vós —, irá ocorrer-me, a mim que aparento falar-vos aqui mesmo ao microfone, embora na verdade esteja na torre lá em cima, como sabem, rodeado de tábuas baratas de abeto da Noruega e de isolamento desgraçado, tomo consciência de que estes novos anjos, na sua mudez infinita, talvez já não sejam anjos, mas antes sacrifícios, sacrifícios no sentido original e sagrado da palavra […]»
II — Da dignidade humana
«Ah, basta de anjos!
Falemos em vez disso da dignidade humana.
Ser humano — espantosa criatura —, quem és? […] Criaste arte desde as pinturas rupestres à Última Ceia de Leonardo, da magia negra do ritmo a Johann Sebastian Bach, e por fim, acompanhando o progresso da história, tu, de modo súbito e absoluto, deixaste de acreditar no que quer que seja, e, graças aos engenhos que tu próprio inventaste, destróis a imaginação, resta-te apenas a memória de curto prazo, e assim abriste mão de posses nobres e comuns como são o conhecimento e a beleza e o bem moral, agora prestes a partir para a planície onde as tuas pernas se afundarão, não vás, irás para Marte?, em vez disso: fica, porque este lodo vai engolir-te, arrastar-te para o fundo do pântano, mas foi belo o teu percurso através da evolução, capaz de tirar o fôlego, e infelizmente: não poderá repetir-se.»
III — Da rebeldia
«Ah, basta de dignidade humana.
Falemos em vez disso de rebeldia.
[…]
Estava em Berlim, aguardava no patamar inferior de uma das paragens do U-Bahn. […] Além de um aviso sobre a necessidade de evitar acidentes e de cumprir as regras, tinham pintado uma linha amarela bem visível, larga, no chão entre a coluna com o sinal luminoso e a entrada do túnel, linha amarela que servia para indicar que, embora a plataforma se prolongasse por mais alguns metros, como, de facto, se prolongava, os passageiros não podiam atravessar aquela linha amarela em circunstância alguma, de modo que ali —como em todas as estações —, havia uma zona estritamente proibida entre a linha amarela e a entrada do túnel que ninguém, nomeadamente um passageiro, pode pisar. Enquanto aguardava pelo comboio vindo de Kreuzberg, de repente reparei que estava alguém na zona proibida. Era um sem-abrigo que — costas vergadas de dor, dor patente no rosto que voltava ligeiramente para nós, como se contasse com a nossa compaixão —, tentava urinar para o viaduto sobre os carris.
[…]
O meu comboio levou-me a Ruhleben e não consegui afastar dos pensamentos aqueles tremores e esbracejares, e de repente, como um relâmpago, fui fulminado por uma interrogação: esse sem-abrigo e todos os párias, quando finalmente se revoltarem —, como será essa revolta. Talvez seja sangrenta, talvez impiedosa, talvez terrível, como quando um ser humano massacra outro —, e logo afasto essa ideia, pois digo que não, a revolta em que penso será diferente, porque essa revolta será em relação ao todo.
[…]
Não saio em paragem alguma, desde então estou a bordo daquele U-Bahn, dentro do túnel, porque não há paragem onde possa sair, limito-me a observar as estações que passam e sinto que já pensei sobre tudo, e que já disse tudo o que penso sobre rebeldia, sobre a dignidade humana, sobre os anjos, e sim, talvez sobre tudo —, até sobre a esperança.»
Anjos sem asas, seres muito humanos, sentimentos de revolta e a marcha imparável da catástrofe iminente para descobrir na obra de um dos autores mais singulares da literatura mundial contemporânea.
Sátira devastadora sobre o mundo e a política de hoje por um dos nomes maiores da literatura actual.
Man Booker International Prize | Prémio Kossuth | Prémio do Estado Austríaco para a Literatura Europeia | Prémio Formentor | America Award | National Book Award







