A Fábula publica uma obra de estreia emocionante e desafiante. O Labirinto dos Sentidos, uma narrativa escrita por Laura Luz Silva e ilustrada por Ana Luísa Oliveira, convoca a filosofia e a neurociência para abordar com os mais novos conceitos complexos mas fundamentais para o entendimento do mundo e o conhecimento de nós próprios. Contrariando o imediatismo e a superficialidade, eis um livro que convida a pensar, a abrandar… e a pensar outra vez.
Podes falar-nos um pouco sobre o teu percurso académico e profissional e de como surgiu este livro?
Sempre sonhei ser escritora, mas como era uma carreira arriscada, decidi tirar um curso mais ‘seguro’, porque também tinha interesses amplos — gostava de ciências e de letras. Senti alguma pressão para seguir um trajeto mais clássico, como Direito ou Medicina, mas decidi seguir o que mais me interessava: Neurociência e Filosofia. Fiz Neurociência primeiro porque a Filosofia também não tinha fama de ser muito mais segura do que a escrita.
Adorei o meu curso: logo na segunda semana estávamos com cérebros humanos nas mãos e tínhamos disciplinas sobre tudo, desde Bioquímica até Neuropsicologia. A ideia para o livro surgiu logo durante a licenciatura — queria dar uma experiência imersiva do cérebro às crianças, algo lúdico e inspirador, algo que se assemelhasse talvez a um tipo de realismo mágico, baseado em factos científicos, mas criativo o suficiente para ser fiel também à beleza e à magia do cérebro.
Correndo atrás de bolsas e estágios, a ideia do livro ficou na gaveta. Depois da licenciatura, senti-me mais segura para seguir para as minhas letras; fiz mestrado e doutoramento em Filosofia, e sou hoje professora universitária na área. Olhando agora para trás, acho que escrevi o livro na altura ideal — depois de ter bases filosóficas para escrever algo também fiel às questões mais profundas que o cérebro e os sentidos suscitam.
Alma, a protagonista da narrativa, e a forma como entra no labirinto fazem lembrar o Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carroll. De que forma este clássico foi uma inspiração para ti?
Alice é uma obra tão marcante e tão integrada no nosso imaginário coletivo que é difícil fugir-lhe. O ritmo lúdico, o ambiente fantástico e os momentos surreais da história foram uma inspiração — acho que são elementos essenciais para transmitir a magnitude e o mistério do cérebro. O Labirinto dos Sentidos tem em comum com Alice também o gosto pelo trocadilho, os animais e o tema da natureza em pano de fundo. Acho que O Labirinto do Sentidos tem objetivos pedagógicos mais concretos e que se apoia menos no absurdo por amor ao próprio absurdo.
Realidade e aparência, razão e emoção, lógica e intuição. Todos estes conceitos são complexos. Achas que as crianças estão recetivas a estes temas?
Sem dúvida. É preciso distinguir a sensibilidade a estes temas da consciência explícita dos conceitos, que virá mais tarde. A partir dos cinco anos, as crianças já entendem que as coisas podem ser diferentes do que aparentam ser, que as pessoas podem ter crenças falsas (por exemplo, ser enganadas por uma ilusão). Entre os seis e os oito anos, já sabem bem o que são as emoções e têm noção de que podemos ou não agir sobre elas, e quando.
De qualquer forma, creio que há um grande valor em criar uma ligação afetiva com os temas, mesmo antes de estes poderem ser explorados em detalhe. Esse é um dos objetivos do livro: criar uma ligação emocional ao cérebro e às questões ligadas aos sentidos. Mesmo que os temas e as questões não possam ser aprofundados de imediato, ficam os sentimentos associados ao mundo em que eles emergiram — o que pode, julgo eu, ter um impacto enorme e predispor o leitor a interessar-se por esses temas no futuro.
O que é uma atitude filosófica e quais os benefícios da filosofia no nosso quotidiano?
Para mim, uma atitude filosófica é um desassossego face ao status quo, uma prontidão para pôr tudo em questão e uma sensibilidade para apreciar o prazer de pensar. Uma atitude filosófica implica, muitas vezes, a capacidade de habitar o espaço desconfortável entre a vontade de simplificar o complexo e o cuidado de não reduzir os fenómenos nem os desnaturalizar — de se sentir confortável na ambivalência e na ambiguidade, sem respostas rápidas ou fáceis.
A filosofia ajuda-nos a fazer sentido do mundo e a navegá-la pois aprendemos a fazer distinções mais granulares e a seguir e aplicar a lógica para melhor fazer face às grandes questões da vida. Considero a filosofia absolutamente essencial para a vida pessoal e política. Na vida pessoal, para nos entendermos melhor a nós mesmos, e aos outros, para percebermos o que devemos uns aos outros e como melhor viver juntos.
Na vida política também — especialmente agora, numa altura de polarização crescente, caracterizada por falta de confiança nas instituições, na ciência, nos peritos, etc. É mais importante do que nunca aprender a pensar: saber identificar e corrigir falácias lógicas, seguir e elaborar raciocínios coerentes, identificar boas fontes de informação e construir as nossas opiniões sobre bases sólidas.
Estiveste a elaborar um guião de leitura para pais e professores poderem explorar este livro com as crianças. Tens ideias para trabalhares este livro em sessões com crianças e jovens?
Sim, imensas! Há tanto que se pode fazer, os sentidos oferecem tanta diversão — desde ilusões ópticas, experiências práticas e jogos, a desafios criativos e debates. Quantos sons conseguimos identificar se ficarmos em silêncio? Quantos objetos conseguimos identificar de olhos vendados dentro de uma caixa misteriosa? O que mais me fascina é dar a conhecer algumas das maravilhas do cérebro a partir da experiência imersiva/subjetiva — um exemplo quotidiano: o facto de que o cheiro contribui tanto ao paladar pode ser constatado pela experiência comum de não conseguirmos sentir tão bem o sabor da comida quando estamos constipados! A importância de ter dois ouvidos pode ser averiguada jogando ‘Marco Polo’, ora usando dois ouvidos, ora tapando um com um tampão! Uma experiência gira a fazer para mostrar o quanto a visão influencia os outros sentidos é usar corante alimentar cor de laranja para mudar a cor de uma água com gás e ver quanta gente, ao provar, jura estar a beber um refrigerante de laranja!
Há muitos animais que têm sentidos mais apurados do que nós…. Quão diferente seria o nosso dia a dia se tivéssemos um dos SUPER-sentidos deles? Isto pode ser explorado por escrita criativa, dramatização e/ou discussão. Estas atividades suscitam questões filosóficas que devem ser debatidas — será que todos vemos a mesma coisa quando vemos o que chamamos ‘cor de laranja’? Até que ponto podemos confiar nos nossos sentidos? Será que devemos comer animais, se eles até são ‘melhores’ do que nós em alguns aspetos?
Gostarias de voltar a escrever para crianças e jovens? Tens algum plano para isso?
Adorava! Estou muito curiosa por seguir a Alma nas suas próximas aventuras, talvez em primeiro lugar com uma expedição pelo Labirinto dos Afetos. Sendo a Filosofia das Emoções a minha área de especialização, tenho muita vontade de explorar como transformar alguns dos temas que animam a minha investigação, como a racionalidade das emoções, numa aventura imersiva e emotiva! Acho que há muito a ser corrigido em relação a como pensamos e vivemos as nossas emoções, e um livro infantil é uma excelente maneira de tentar contribuir para uma mudança positiva neste sentido.
Este é o teu primeiro livro infantojuvenil ilustrado. Como foi ver o trabalho de outro autor complementar o teu trabalho de escrita?
Foi absolutamente fantástico. É uma sensação difícil de explicar — ver o que só existia na nossa cabeça, de repente à nossa frente, concreto. Sabem como muitas vezes a nossa imaginação supera a realidade? E como, às vezes, quando as coisas se tornam concretas, perdem alguma magia?… Aqui foi o completo oposto — as ilustrações superaram totalmente o que eu tinha em mente, e, para além disso, incorporam elementos do meu pensamento e dos meus valores que nem estão explícitos no livro — foi uma sintonia quase arrepiante.