Livraria do mês: Aberta

Tinha tudo para não resultar: surgiu em 2021, logo depois do segundo confinamento da Covid-19, das mãos de Paulo e Ricardo, que não tinham qualquer experiência prévia a trabalhar em livrarias ou sustentar um negócio. A sua dedicação e conhecimento em literatura fê-la vingar e, hoje em dia, afirma-se como a única livraria queer do país. Em junho, mês do Orgulho LGBTQIA+, visitámos a Livraria Aberta, no Porto, e conversámos com o livreiro Paulo Brás.
Este ano assumimos uma missão: dar às livrarias independentes o destaque que merecem, entrevistando um livreiro por mês e dando, nesse mês, descontos exclusivos aos leitores que a visitem. Em Junho, os leitores têm 10% de desconto na compra de livros da Penguin Random House Portugal na Livraria Aberta.
Podem ver as restantes entrevistas a livreiros independentes aqui. 

 

 

A Aberta é uma livraria queer. Em que consiste o vosso catálogo? O que se vende numa livraria queer?

Dizemos que a Livraria Aberta é uma livraria queer porque temos um catálogo de autoria ou com personagens LGBTQIA+, assim como teoria feminista, pessoas racializadas, pessoas com deficiência, e outros tipos de descriminação ou marginalização. Tudo isto, de forma interseccional, faz o catálogo. Tentamos que o catálogo seja o mais abrangente possível, do ponto de vista do género literário e da representação de raça, género, classe, ou orientação…

 

A Livraria Aberta é conhecida pelas conversas. Como é que funcionam?

As conversas são uma espécie de grupo de leitura, mas em que não há trabalho de casa. Escolhemos um tema, que trabalhamos durante seis semanas. Escolhemos textos sobre esse tema – poemas, ensaios, excertos de capítulos -, quer estejam cá à venda, quer não estejam. Depois, lemos os textos em voz alta e as pessoas comentam o que quiserem comentar… Sobre os textos, sobre o que leram, sobre as suas vidas, sobre o que for. Temos feito isto cá no Porto, e também em Lisboa uma vez por mês.

 

Entretanto, também começaram a fazer aqui exposições…

Talvez porque estamos perto da faculdade de Belas Artes, as pessoas mais jovens que frequentam a nossa casa são maioritariamente de artes. Então, começámos a perceber que havia interesse por parte dessas pessoas em terem aqui trabalhos e se as pessoas nos estão a ajudar a criar este negócio, nós também queremos ajudá-las. As livrarias também são espaços de comunidade. Nas livrarias independentes temos mais liberdade para tratar diretamente com pessoas que fazem edições de autor, livros de artista ou postais, por exemplo, e tê-las aqui à venda. Uma coisa que numa livraria maior provavelemente não conseguiríamos fazer.

 

 

 

Esta é uma livraria onde qualquer pessoa entra. Somos frequentados como a livraria do bairro pelas pessoas que vivem cá na rua, de todas as idades e que nos compram todo o tipo de livros.”

 

De onde é que vem a tua paixão pelos livros?

Eu venho de um ambiente mais pobre da periferia do Porto, de um bairro social, portanto, não cresci com livros em casa. A relação que tenho com os livros foi sempre através de bibliotecas escolares; demorei mais tempo a frequentar bibliotecas públicas, só aconteceu em idade adulta. A biblioteca da Faculdade de Letras foi a primeira grande biblioteca que vi e onde senti: “ah, eu posso levar estas coisas todas para casa!” Era espetacular.  Portanto, acho que essa relação veio das professoras que tive, das escolas, das bibliotecas. E eventualmente, a partir do secundário, do estudo da literatura, área em que me formei. Vejo-me sempre, apesar das muitas coisas que faço, como um investigador de literatura: quando montámos a livraria, essa foi a parte mais fácil, saber que livros pôr aqui. Nós não tínhamos a experiência de ter um negócio, nem sequer a experiência de trabalhar em livrarias. Só tínhamos a experiência de conhecer os livros.

 

Como é que vão celebrar o mês do Orgulho LGBTQIA+?

Este ano a Marcha do Orgulho celebra 20 anos no Porto, o que é especial: são 20 anos de trabalho junto das comunidades do Porto. E calha no dia do nosso 4º aniversário, o 28 de junho. Por isso, a recomendar alguma coisa, seria a de virem celebrar connosco e depois seguirem para a marcha, a seguir ao almoço.
De resto, na verdade, é o trabalho que fazemos o ano inteiro: é o mês do orgulho, mas nós fazemos o mês do orgulho todos os meses!

 

Qual é a importância da leitura e dos livros para este tipo de movimentos?

Pondo as coisas de uma forma simples: é as pessoas perceberem que não estão sozinhas e que não são as primeiras a viver determinadas experiências.

Mas a nossa resposta não pode ser especificamente para a comunidade LGBT. Apesar de nós trabalharmos e vivermos com ela e pertencermos a ela, esta é uma livraria onde qualquer pessoa entra. Somos frequentados como a livraria do bairro pelas pessoas que vivem cá na rua, de todas as idades e que nos compram todo o tipo de livros. Acho que a leitura, mesmo de autorias LGBT, é importante para toda a gente: qualquer pessoa se consegue relacionar com o Édouard Louis ou com a Alana Portero. Mesmo que, por exemplo, no caso da Portero, a experiência trans seja uma coisa nova para uma pessoa que esteja a ler, há outras coisas no livro: há a experiência de viver numa família pobre, de viver na classe operária, de viver num bairro. A interseção dessas coisas todas acaba por fazer com que as pessoas se relacionem com aquela pessoa ou com aquela autoria ou com aquela personagem, mesmo que fictícia, levando dali alguma coisa para a sua própria vida.

Depois, há uma coisa mais básica que é a apreensão do vocabulário. Muitas vezes, não temos palavras para dizer o que queremos. Estamos sempre a descobrir livros que nos ensinam ‘ah, era isto que eu queria dizer e não sabia como dizer’. Tanto aprendemos isso com o Édouard Louis, um homem branco gay da periferia de Paris, como aprendemos com a Carolina Maria de Jesus, que vivia numa favela no Brasil e catava lixo, como aprendemos com a Audré Lorde, uma feminista negra lésbica que vivia na América. Aprendemos isso com toda a gente. É preciso ouvir as pessoas todas, para podermos saber o que podemos aprender com elas.

 

Acho que nós, por defeito de profissão, tendemos a procurar aquilo que é diferente de nós, para podermos aprender com essas experiências.”

 

 

Que livros da Penguin mais recomendas aqui na livraria?

A Charlotte Perkins Gilman, de quem gosto muito. Agrada-me a ideia de que com este livro, O Papel de Parede Amarelo, ainda hoje podemos pensar o que é esperado dos papéis de género, o que é esperado de uma mulher e como é que os homens veem as mulheres. Na época em que o livro foi escrito as mulheres eram vistas como doentes porque não concordavam com os homens, porque não queriam estar fechadas em casa, porque queriam fazer mais do que aquilo que as deixavam fazer. A ideia desta mulher, que encontra uma certa evasão na sororidade com outras figuras femininas, é uma imagem muito potente. Pode ser visto como uma coisa muitíssimo triste, ou pode ser visto de uma forma empoderadora, depende de como quisermos ler a história.

 O Raduan Nassar, com o Lavoura Arcaica, por questões sentimentais: falei dele na minha dissertação de mestrado. Quando vocês o reeditaram, ele não publicava há 30 anos. Esta pessoa que escreveu, como ele diz, livro e meio – é um romance, um livro de contos e uma novela -, e depois disse “pronto, está bom, agora vou para a minha fazenda criar as minhas galinhas e vocês resolvam-se”.

É um livro sobre a destruição do patriarcado. É uma espécie de paródia do regresso do filho pródigo. Raduan leva o regresso até às últimas consequências: “há um contexto sistémico, religioso, tradicional, familiar, que fez com que o jovem saísse de casa e vocês querem mesmo que ele regresse? Têm a certeza? Porque, se ele regressar, isso significa a destruição da família.” E acho que, num contexto específico de ditadura no Brasil, é uma forma revolucionária de falar sobre tradição, família, relações sexuais, relações de poder…

O Édouard Louis,  que hoje está a ter um boom de vendas, graças àquela entrevista no Brasil, no Roda Viva. Desde essa entrevista de repente as pessoas lembraram-se outra vez em Portugal que ele existe. Acho muito importante o contexto em que ele se move, esta ideia de “eu sou um autor que não veio originalmente de um meio burguês, de classe média alta, não tive a educação que vocês tiveram, não tenho as referências que vocês têm”. Acho que isso é muito importante para que a literatura não seja só um grupo de pessoas que vieram da mesma família, da mesma zona rica de certa cidade ou certo país. Quando as pessoas pegam nos livros dele, a literatura não é o mais importante; o mais importante é tu perceberes que este menino cresceu e pode contar as histórias que viveu. Histórias sobre a mãe dele, ou sobre a doença do pai, ou sobre as condições de trabalho que o pai tinha, ou sobre as relações tóxicas que a mãe tinha.

E a Alana Portero faz, em Maus Hábitos, tudo isto que acabei de dizer sobre o Édouard Louis mas no seu próprio contexto, que é a história de Espanha, a história da pobreza, a história da classe operária. Mostra-nos uma coisa importante, que é uma experiência trans possível. Não há uma experiência trans, há muitas. A dela não é mais ou menos válida do que muitas outras. Ainda estamos num momento em que, editorialmente, não há muitas pessoas trans publicadas e nós tendemos a vê-las como exemplos da sua própria comunidade. A fase seguinte vai ter de passar por haver mais pessoas trans publicadas e nós percebermos que elas têm todos os defeitos e todas as qualidades de todas as outras pessoas e que são todas diferentes, e isso é espetacular porque as pessoas cis também são todas diferentes, e as pessoas gay também são todas diferentes e as pessoas lésbicas também são todas diferentes.

Acho que nós, por defeito de profissão, tendemos a procurar aquilo que é diferente de nós, para podermos aprender com essas experiências, por oposição a querer vender dez livros todos iguais, que contam mais ou menos a mesma história. Há experiências de que ainda falta falar e isso podia resumir a livraria: nós estamos sempre à procura de histórias diferentes. Continua a haver histórias diferentes para contar, estamos sempre só à procura de perceber o que é que ainda pode ser dito.

 

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