Livraria do mês: Aqui há gato

Quem for a Santarém e seguir as pegadas de gato dá logo com ela… Falamos da Aqui Há Gato, a livraria que chega este ano à maioridade, mas continua a dedicar-se aos mais pequeninos. Nesta livraria há gatos, livros e até uma gruta, ateliers criativos e as míticas Horas do Conto, que fazem os delírios das crianças no YouTube e ao vivo. Fomos falar com a livreira Sofia para conhecer melhor o projeto desta livraria independente.

Este ano assumimos uma missão: dar às livrarias independentes o destaque que merecem, entrevistando um livreiro por mês e dando, nesse mês, descontos exclusivos aos leitores que a visitem. Em Junho, os leitores têm 10% de desconto na compra de livros da Penguin Random House Portugal na Livraria Aberta.

Podem ver as restantes entrevistas a livreiros independentes aqui. 

 

Como nasceu a Aqui há gato?
A Aqui Há Gato surgiu de um sonho que eu tinha, não de abrir uma livraria, mas de juntar a Psicologia, a Educação e a Arte, que são a minha área de estudos. Então, quando acabei o curso, queria trabalhar com isto, mas não sabia como.

Trabalhei em muitos sítios até que fui parar a um centro de emprego no Alentejo. Era um trabalho muito burocrático, muito chato, e senti necessidade de fazer parte de uma associação cultural. Um dia, essa associação cultural foi convidada para ir contar histórias numa feira do livro. Eu disse que não sabia contar histórias, mas eles insistiram, disseram que era um grupo pequenino. No final eram várias famílias, para aí umas 70 pessoas… Eu respirei fundo e lá contei a história. E quando acabei pensei, “é isto que eu quero fazer, é com o livro que eu vou conseguir reunir a Psicologia, a Educação e a Arte.”

A partir daí, o puzzle ficou organizado. Já sabia que abrir uma livraria independente seria difícil. Abrir uma livraria infantil, mais difícil. Abrir uma livraria infantil e independente, em Santarém, mais difícil ainda. Portanto, era assim uma série de desafios, mas eu sempre acreditei que iria dar certo. Não sei como, mas sempre acreditei.

Por isso, quando abrimos, sabia que não podia ser só uma livraria, começámos logo com as oficinas artísticas e a contar histórias em escolas. Quando chegou a pandemia, achei que era o meu fim, porque nunca tinha conseguido viver só com a venda de livros. Então, carreguei no botão do direto do canal do YouTube. E aí o nosso público alargou muito. Conseguimos sobreviver, e as histórias e a hora do conto ficaram. Acontecem todos os sábados às 11h30 e às 16h00, aqui na livraria, e durante a semana no canal do YouTube.

Uma boa história pode salvar o mundo: salva o nosso mundo, mas também salva o mundo de todos.”

Qual é a importância de contar histórias às crianças?
Eu acho que, com o livro infantil, nós conseguimos despertar vários tipos de sentimentos e descobrir vários caminhos, várias opções de vida, várias respostas que nos vão surgindo. Acredito que uma boa história pode salvar o mundo: salva o nosso mundo, mas também salva o mundo de todos. Há histórias que fazem rir, há histórias que fazem chorar, há histórias que fazem pensar e há espaço para todas elas.

Deve dar-se essa possibilidade às crianças, desde muito cedo, de ter vários tipos de histórias, vários estilos de ilustrações, para que também se apercebam que há várias formas de respondermos aos desafios que se vão apresentando na nossa vida. Muitas vezes lemos uma história e vemos a perspetiva de uma personagem e achamos que se estivessemos no lugar dela não tomariamos aquela decisão, mas, se calhar, um ou dois meses depois, quando  entramos naquela história e a lemos, temos uma perspetiva diferente. A magia das boas histórias é mesmo assim: acompanham-nos, fazem-nos crescer, fazem-nos ver outras perspetivas e trazem-nos uma empatia muito especial.

 

E como lidas com as crianças que dizem que não gostam de ler?
Normalmente, quando alguém me diz que não gosta de ler, eu dou sempre a minha experiência de vida: eu sou disléxica e não gostava de ler. Ou melhor, era muito difícil para mim ler. Na minha altura não se sabia muito bem o que era isso da dislexia. Então, sempre fui habituada a ouvir histórias. A minha irmã contava-me muitas histórias, a minha mãe também, mas sobretudo a minha bisavó. Lembro-me muito bem da minha bisavó, que não sabia ler, não sabia escrever, nunca tinha tido um livro e sabia contar histórias de uma forma maravilhosa.

Ler era para mim um grande esforço… Até que fui operada à coluna, estive muito tempo imobilizada no hospital e não tinha nada para fazer, então, a minha mãe deixou um livro de banda desenhada, e esse foi o início… e quem diria que hoje teria uma livraria!

Eu acho que é importante mostrar às crianças que não há um só estilo de livro. É importante mostrar várias propostas. Bandas desenhadas, enciclopédias ou livros informativos, vários tipos de narrativas, vários tipos de ilustração, que é para que a criança tenha a possibilidade de perceber aquilo que efetivamente gosta. Eu não posso pegar numa criança que não gosta de ler a apresentar-lhe um livro de 80 ou 100 páginas. Não é assim que vamos motivar a criança; é importante dar mais variedade de estilos de livros para que ela perceba aquilo de que gosta e aquilo de que não gosta, e explore…

Os livros são geracionais. O que é que esta nova geração procura nos livros?
Pela experiência da Aqui Há Gato, eu consigo ver uma grande diferença entre as crianças antes da pandemia e depois da pandemia. Antes da pandemia, normalmente, eram os pais que mostravam à criança uma variedade de livros e orientavam, de alguma forma, a escolha da criança. Orientavam pensando no que é que lhes apetecia ler aos filhos. Era uma proposta que iniciava a partir dos pais. Hoje, as crianças que chegam à minha livraria – e não sei se acontece nas outras -, é que dizem “eu quero aquela história”, “esta eu gostei”, “aquela não gostei”. E porquê? Pelo trabalho que estamos, neste momento, a desenvolver no digital, as crianças têm a possibilidade de conhecer a história. Há quem ache que é um conteúdo digital e que estamos a criar leitores digitais… eu não estou a criar leitores digitais, estou a criar leitores. Porque, se eu estivesse a criar leitores digitais, eu não tinha as crianças a virem cá e quererem aquela história que conhecem. Isto é fantástico de ouvir de uma criança: “aquela história que eu gosto”, “aquela história que tem aquela personagem”, “não me lembro muito bem do título, mas a capa era assim”, ou “é daquela editora que tem aquele símbolo”. Isto é fantástico, é dar ferramentas a uma criança de ter uma escolha, de se tornar um grande leitor; aliás, já é um grande leitor!

Sobretudo, criar conteúdos digitais permite a todos ouvirem histórias, porque nem todos têm possibilidade de comprar um livro. Nem todos têm uma escola com uma biblioteca escolar. Nem todos têm o hábito de ir a uma biblioteca municipal. Mas, quase toda a gente, hoje em dia, tem uma ligação à internet. Aquelas crianças que não têm a possibilidade de ouvir história nenhuma, que nunca ouviram uma história, podem, nem que seja só uma vez, carregar naquele botão do YouTube, naquele conteúdo que tem 5 minutos e ter a possibilidade de ouvir uma história. Isto é algo que eu acho que pode ser uma semente que pode germinar no futuro. De criar o hábito de ouvir uma história.

Criar conteúdos digitais permite a todos ouvirem histórias, porque nem todos têm possibilidade de comprar um livro.”

 

Falando disso, que livro recente, desta época, precisavas de ter lido em pequenina?
Quem souber o que é a felicidade que o diga. Esta história chegou à livraria num dia complexo… Eu tenho esta sorte, este privilégio, de ter histórias que chegam e parece que é o universo que está a querer dizer alguma coisa. E há histórias que efetivamente mudaram a minha vida, que apareceram no momento certo, no dia certo, e esta foi uma delas. E foi tão especial que no dia a seguir à noite tive de contá-la outra vez.

Quantas vezes nós não paramos para pensar na felicidade que sentimos? Temos mais facilidade em sentir a tristeza, e de refletir sobre ela, do que propriamente sobre a felicidade. Muitas vezes, estamos muito felizes e não temos tempo para parar e pensarmos “estou feliz”. E, por isso, às vezes tenho esta necessidade de olhar para as crianças, de perguntar se estão felizes, e de ouvir “estou, muito feliz”. E esta história, Quem souber o que é a felicidade que o diga acaba por resumir isto. É importante pensarmos em cada momento, dure ele um dia inteiro ou um milésimo de segundo, porque a vida é muito rápida. Uma história contada a uma criança de 4 anos tem um significado, e contada aos 30, aos 40, aos 70 anos tem outro. É essa a magia das grandes histórias, das boas histórias que acompanham uma vida. Por isso é que eu recebi o livro num dia e, no outro, senti que tinha de ler outra vez, porque bebemos sempre em cada pormenor de ilustração, em cada palavra. É uma história muito especial que aconselho a todos.

E além deste, que outros livros recomendas?
Gosto muito de As corujas bebés. É uma história que acaba por percorrer vários tipos de sentimentos: o amor enorme pela mãe, o medo imenso de a perder, agarrar a esperança de que a mãe volte, e a união destes três irmãos, destas três corujinhas. É um livro que eu adoro. Há aqui um pequenote, o Tomás, que está sempre a dizer que tem saudades da sua mãe porque ele é muito pequenino… e tem ilustrações tão fantásticas! Normalmente, quando conto a história, leio as palavras mas também leio as ilustrações. Por exemplo, há uma parte em que o Tomás diz “Eu quero a minha mamã!” e depois a história só continua com “disse o Tomás”, mas eu acrescento “porque o Tomás era muito pequenino e tinha muitas saudades da sua mãe”, porque olha-se para esta ilustração e vê-se o pânico dele, a esperança ali a querer esvair-se. É uma história deliciosa, que eu adoro.

Depois, O dia em que me tornei pior que um lobo. É uma história muito atual, que fala sobre o bullying e a necessidade que temos de sentir que pertencemos a um grupo. De sentirmos que estamos deslocados e de como esse sentimento pode ser muito perigoso, porque acabamos por ceder muita coisa dentro de nós, para pertencer ao tal grupo.

Um macaco rabugento é uma história bem divertida. Todos nós conhecemos alguém rabugento – nem que seja nós próprios, de vez em quando -, e é uma história que permite dar espaço a todos os estados de humor que nós temos. Este macaco rabugento também tem sempre amigos que lhe dão apoio e que o fazem perceber que se calhar não é preciso ser tão rabugento – ou talvez sim! Eu tenho três gatos, o Epá, a Migas e a Petinga. A Migas, dos três, é a mais rabugenta, às vezes tira-me do sério! Mas o que seria de nós os quatro sem ela? Sem aqueles momentos que nos irritam por ela ser tão rabugenta? Portanto, ainda bem que há gente rabugenta, nem que seja só para nós também nos confrontarmos com as dificuldades da vida…

E depois, finalmente, a coleção da Bluey. Para já, é um desenho animado muito acarinhado pelo público, não só infantil mas também pelas famílias. Às vezes, há desenhos animados que quando passam para o livro perdem um bocadinho da sua essência, mas com a Bluey fizeram uma boa transição. É uma família que brinca muito, onde se respeitam muito, onde se escutam muito uns aos outros e, por isso,  também aconselho.

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