A livraria Centésima Página, em Braga, esteve desde o início em contra-corrente. Surgiu em 1999, nesse virar do século que trazia um novo paradigma literário, em que, um pouco por todo o país, as livrarias de rua estavam a fechar: por um lado, muitos livreiros envelheciam sem deixar sucessores interessados em continuar os seus projetos, por outro começavam a aparecer grandes grupos livreiros, o que assustava os pequenos comerciantes. Além disso, surgia com uma proposta diferente das demais, como um espaço aberto, íntimo, onde as pessoas podiam circular livremente e folhear os livros à sua vontade.
O projeto funcionou, e em 2005 estabeleceu-se numa zona nobre da cidade, na belíssima Casa Rolão, onde puderam abrir novas salas, um jardim e uma cafetaria, de forma a continuar a acolher o público como se estivesse em casa. Aqui, tornaram-se num polo cultural da cidade, promovendo eventos com autores, performances, exposições, e apresentação de projetos artísticos. Em 2024, para assinalar os 25 anos de existência, a Centésima Página faz uma nova expansão, abrindo uma nova sala no primeiro andar, dedicada ao cinema e à música, respeitando uma tendência que têm tido desde o início: o cruzamento de linguagens.
Em novembro, damos a conhecer a Centésima Página e as livreiras fundadoras, Helena Veloso e Sofia Afonso.
Em novembro celebram o vosso 26º aniversário. Como vão celebrar?
Sofia: Este ano, Braga é Capital da Cultura e lançou uma open call aos diferentes agentes culturais da cidade. Nós apresentámos uma pequena programação que se chama Manifesto do Futuro, onde brincamos com o 100 do nosso nome e com o 25 do ano. O que propomos é projetar, a partir de hoje e deste território, o coletivo de amanhã, em 2125. Temos várias atividades. Uma delas é a Biblioteca 2125, em que vamos criar uma biblioteca com cem títulos, sugeridos por editores, leitores, escritores e visitantes que escrevam também uma pequena mensagem ao leitor de 2125. No nosso aniversário vamos inaugurar essa biblioteca física.
O que significa, hoje em dia, ser um livreiro independente?
Helena: Hoje em dia? É desde sempre! Quando nós abrimos a livraria foi um pouco em contracorrente com aquilo que estava a acontecer, com a instalação das grandes cadeias livreiras. E, inclusive, no momento em que o livro começa a ser comercializado em espaços de supermercado. Portanto, durante muito tempo, o livreiro independente era considerado uma espécie meio estranha. As editoras não compreendiam, muitas vezes, aquilo que nós escolhíamos, porque é que não queríamos aderir a certas propostas, nem fazer certo tipo de campanhas. Tentámos sempre manter que a palavra independência, de facto, significa alguma coisa para nós. E significa ter um projeto com identidade, com autenticidade. Se assim não fosse, não teríamos chegado a 2025, temos a certeza absoluta disso. Se tivéssemos cedido a essas variações, a pressões e modas, não estávamos aqui.
Não estamos aqui do contra, não tem nada a ver com isso. Tem a ver com termos uma ideia do tipo de oferta que queremos manter aqui, como é que as coisas devem ser feitas, e tentar não fugir muito dessa linha. E acho que o tempo nos tem dado alguma razão.
Tentámos sempre manter que a palavra independência, de facto, significa alguma coisa para nós. E significa ter um projeto com identidade, com autenticidade. Se assim não fosse, não teríamos chegado a 2025, temos a certeza absoluta disso.
Sofia: Desde o primeiro momento, e durante vários anos, houve várias tentativas de criar uma associação de livrarias independentes. O Covid foi, no fundo, o momento que permitiu acelerar e concretizar esse projeto. A grande força da Reli, a rede de livrarias independentes, da qual somos livraria fundadora e parte da direção, é, precisamente, o corpo da sua heterogeneidade.
Por muito que se valorize a lógica da liberalização do mercado, na realidade, o seu objetivo último é a uniformização e a padronização. E nós, de alguma maneira, somos a falha desse sistema. Essa totalidade não é cumprida porque nós representamos a falha. E a falha, no fundo, é o nicho da criatividade, do outro, da alteridade, que é fundamental na defesa dos valores nos quais nos inscrevemos. Temos de tentar assegurar esse espaço de liberdade, que não tem preço, não tem valor. Penso que as livrarias independentes têm essa força.
Claro que também é importante que haja uma associação, porque ela dá voz, dá representatividade nos lugares onde se decidem políticas que vão ter impacto em nós e onde, normalmente, não somos tidos em conta. Portanto, é importante estar lá, ter essa voz, ter essa participação e, também, criar essa falha para pensar as coisas de outra maneira. Porque a realidade não é única, ou aquela que as estatísticas querem demonstrar, como os indicadores do mercado: o mercado dificilmente representa a nossa realidade, nunca a representou. E não queremos que uma substitua a outra. É outra realidade. Mas ela tem de ser tida em conta, tem de haver um dispositivo legal para que este universo, esta oferta, permaneça e tenha o seu lugar no mercado do livro e em condições de paridade com outros atores. Mas é sempre um lugar de grande dificuldade.
Helena: …de sobrevivência. Vemo-nos quase sempre como sobreviventes, como resistentes. Parece que estamos sempre do outro lado da barricada. E não devia ser assim. Porque, de facto, devemos coexistir. Há lugar para tudo e há mercado para todos. Mas há uma tendência para desvalorizar o trabalho que as livrarias independentes fazem.
Embora, com o Covid, tenha havido um clique: novas gerações começaram a querer outra vez livrarias de rua, a querer coisas diferentes, a querer o livro em papel e não em e-book. Ainda não são, mas estão a entrar na fase de serem eles os grandes consumidores e querem lojas onde possam sentir livremente, onde tenham variedade, onde possam escolher, onde consigam encontrar o livro mais antigo daquele autor que nunca está nas grandes cadeias.
Sofia: Aliás, há algumas livrarias que têm surgido, nestes últimos dois anos, a especializar-se em certos segmentos, e isso é muito importante. O livro não pode ter um ciclo de vida como a roupa… Não é a mesma coisa. É um objeto cultural muito exigente. Há essa procura.
Nós sentimos que há uma geração que também lê em língua estrangeira e que é exigente, que quer ser surpreendida. Há uma procura por um espaço no qual se consigam projetar e identificar. Não só um espaço de consumo, de pick and go. Não querem que lhes impingemos nada, querem descobrir, fazer o seu caminho.
O livro e a música são, por excelência, o objeto da troca. Da troca e da passagem. Da transmissão. Do empréstimo. Da partilha. E as livrarias são isso. São espaços onde se constrói uma relação.
Helena: Como tu costumas dizer, é um espaço de cidadania. E as livrarias independentes são isso.
Por muito que se valorize a lógica da liberalização do mercado, na realidade, o seu objetivo último é a uniformização e a padronização. E nós, de alguma maneira, somos a falha desse sistema.”
E agora falando de livros: se tivessem de definir quais são os ingredientes necessários para um bom livro, o que é que diriam?
Helena: Não há fórmulas. O que é um bom livro para mim, pode não ser para ti.
A minha leitura vai, sobretudo, para a ficção. Gosto imenso de ouvir poesia, mas não tanto de ler. Já fui uma grande leitora de livros de banda desenhada. E lia livros aos meus filhos quando eles eram pequenos, por isso, muitos livros infantis, faz parte.
Mas varia muito. Quando gosto de um autor, regresso, tento repeti-lo. Gosto de um bom policial, também. Mas o que é que me atrai num livro? Não sei. Não tenho uma receita… Tanto leio Anna Karenina, como leio o livro mais recente do Perutz, que estou com curiosidade de ler. Gosto de misturar clássicos com literatura mais contemporânea.
Não tenho uma linha. Gosto dos anglo-saxónicos, como gosto dos franceses, dos italianos, dos portugueses, dos russos…
Sofia: Há um rito de iniciação do livro que toda a gente constrói de alguma maneira. Eu gosto de ler o primeiro parágrafo do livro. E, às vezes, ele chama por mim, outras vezes não. Eu também sou uma leitora mais lenta. Não devia dizer isto enquanto livreira, mas estou sempre um bocadinho em décalage relativamente à novidade, um bocadinho em atraso.
Houve uma altura em que lia mais ensaios, durante muito tempo. Portanto, a ficção ficou mais abandonada. Agora, se calhar, estou a ler mais ficção, mas tenho sempre um ensaio na minha mesa, porque leio várias coisas ao mesmo tempo. Sou indisciplinada na leitura… Muito indisciplinada. Mas, como dizia o Daniel Pennac, não há uma receita para se ler e para ser leitor, é uma construção.
Também gosto de um bom policial. Gosto muito da literatura infantojuvenil. Portanto, de vez em quando, também fico ali refugiada no canto infantojuvenil e começo a ler para mim, ou a ler para os adultos. Às vezes, leio mais em voz alta para adultos do que propriamente para mim.
Helena: O que é que me atrai num livro? É, de facto, ser bem escrito. Há livros em que se diz muito quando aquilo se resumia numa frase, e dá-me saudades daqueles escritores que escreviam livros muito mais pequenos mas que escolhiam a palavra, o advérbio, o artigo para dizer exatamente aquilo que queriam dizer.
E gosto que me contem uma boa história. Há neste momento uma literatura de ficção que é muito experimental. Parece que se joga com a linguagem pela linguagem e joga-se com os cenários, há ali jogo de palavras, não há uma boa história. E eu gosto que me contem uma boa história. Gosto de uma coisa bem escrita. Admiro essa ideia de escrever, de ficar com uma boa frase.
Sofia: Nem todos os livros têm que habitar em nós, têm que ficar em nós. Há uns que até não são nada de mais, mas gostei. Não tem que ser sempre aquela coisa… Temos de ter prazer e diversão.
O livro e a música são, por excelência, o objeto da troca. Da troca e da passagem. Da transmissão. Do empréstimo. Da partilha. E as livrarias são isso. São espaços onde se constrói uma relação.”
Agora passamos às vossas recomendações, e aproveitamos a deixa do vosso projeto e perguntávamos: qual é o livro da Penguin que escolhiam para 2125?
Sofia: Eu vou para o livro infantojuvenil…
O Livro dos Erros porque nós estamos numa era em que se quer banir o erro. O erro, como demonstra muito bem este livro, permite a criação, a criatividade. É a partir dele que eu me desdobro e que vejo as coisas de outra maneira. É a partir dele que eu consigo fazer outra coisa.
Com as novas gerações, há uma espécie de patologia para que não se possa errar. Os miúdos têm de acertar logo na conta, têm de acertar logo no desenho, têm de acertar logo na caligrafia. Não pode ser. Estamos a criar monstros. Não há lugar para a experiência, para a descoberta do brincar, faz-se tudo com o propósito. Esse lado da experiência é o que nos permite essa capacidade de fazer e de resolver.
Depois, Amigos, que no fundo é um hino à vida. Porque a vida faz-nos encontrar pessoas, nos nossos caminhos. É uma ode muito bonita, que me fez ter a lágrima muito facilmente no canto do olho. É muito simples, lá está, não é preciso dizer muito, mas é de facto uma ode à amizade, ao acaso. E, mesmo que vamos perdendo amigos, eles ficam em nós. É um lugar muito especial do que foi construído, mesmo se durante pouco tempo.
A Leïla Slimani, que é, eu diria, mais do que escritora, uma intelectual de que gosto muito. Gosto da maneira como ela enuncia as questões de identidade, que é onde ela se inscreve na realidade. Não só a identidade mulher, mas a identidade que se quer sempre fixar numa singularidade, quando elas são plurais. Esta dicotomia do Oriente, do outro, ela enuncia isso muito bem. Já lemos várias coisas dela, gosto muito da trilogia O país dos outros, e é uma escritora que aqui na livraria é muito recomendada e que as pessoas procuram. Estamos à espera que ela venha à livraria…
Numa outra onda, escolho o Édouard Louis, de quem felizmente reeditaram agora Quem Matou o Meu Pai. Quando se fala em autobiografia, acho que se fecha demasiado a categoria. O que acho muito interessante no Édouard Louis é a tradução da macro-história na micro-história. Como é que a macroesfera se traduz na esfera familiar, na esfera individual, na relação com o outro. As questões da desigualdade e da luta de classes, que me interessam muito.
Helena: Se calhar escolho o Pedro Páramo, que é um dos livros da minha vida. É um belo livro.
Ou então a Mafalda, porque é preciso saber rir de nós próprios. Saber ter sempre esse recuo.
Leio muito os latino-americanos. O Juan Gabriel Vásquez, o Javier Marías, que é um dos meus favoritos, o Manuel Vilas… Acabei há pouco um livro do Vásquez, O barulho das coisas ao cair e gostei imenso. Portanto, posso recomendar este novo livro, Os nomes de Feliza. Estou curiosa para o ler, porque gostei imenso do anterior.
___
Este ano assumimos uma missão: dar às livrarias independentes o destaque que merecem, entrevistando um livreiro por mês e dando, nesse mês, descontos exclusivos aos leitores que a visitem. Em Novembro, os leitores têm 10% de desconto na compra de livros da Penguin Random House Portugal comprados na Centésima Página.
Restantes entrevistas a livreiros independentes aqui.











