Livraria do mês: Snob

Num mundo cada vez mais digital e uniformizado, as livrarias e livreiros independentes são uma espécie de ilhas do tesouro. Espaços de curadoria literária, trazem recomendações personalizadas a cada leitor e permitem fortalecer um sentimento de comunidade. Assim, assumimos uma missão: dar às livrarias independentes o destaque que merecem, entrevistando um livreiro por mês, pelo país fora. Durante esse mês, os leitores terão descontos exclusivos em todos os nossos livros comprados na livraria em destaque.

Escondida numa rua pacata na Estrela, em Lisboa, a livraria Snob já passou por muitas vidas. Nasceu em 2014, em Guimarães, cidade natal do livreiro fundador, Duarte Pereira, como uma livraria generalista, de livro novo, que se propunha a trazer ao público livros que não encontravam noutros sítios.

Dois anos mais tarde, fechou as portas e tornou-se uma livraria “de casa às costas” como lhe chama Rosa Azevedo, livreira com quem conversámos. Passou por feiras do livro e eventos por todo o país e, de vez em quando, até além-fronteiras. Instalou-se de vez em Lisboa, em plena pandemia – celebra este mês cinco anos na capital. Para comemorar, os leitores podem contar com 10% de desconto em qualquer livro da Penguin Random House Portugal comprado na Snob, durante o mês de maio.

 

A Snob fica na Travessa de Santa Quitéria 32A, em Lisboa

Como foi abrir uma livraria durante uma altura tão crítica para os negócios locais e independentes?

Foi complicado e foi tudo muito lento. Íamos abrir em março e abrimos em maio.

Comprámos todo o mobiliário, montamos tudo aqui dentro e veio a pandemia. Portanto, nesses primeiros dois meses só vendemos online. Desde aí, têm sido cinco anos a conquistar o público, porque a pandemia atrasou tudo.

Depois, é muito importante a localização de uma livraria, seja ela qual for, mas para uma livraria independente ainda mais. Não estamos num local de passagem, portanto, é preciso que as pessoas saibam que estamos aqui. Para isso, encontramos como forma de nos posicionarmos ter uma forte programação cultural, lançamentos de livros, mas também muitos eventos que criámos: temos um café filosófico; temos um evento sobre mulheres escritoras do século XX, chamado Elas/Delas; temos alguns ciclos organizados por outras pessoas, mas que têm lugar aqui. Portanto, há sempre coisas a acontecer todas as semanas.

 

O que distingue a Snob enquanto livraria independente?

A Snob é uma livraria generalista, mas fomo-nos especializando – com o tempo, e com aquilo que eram as características do Duarte enquanto livreiro -, na procura de livros raros, difíceis de encontrar, livros que não têm lugar noutros sítios. Começámos a ter também livros em segunda mão, a misturá-los com os novos. Nas nossas estantes, não está separado, não temos uma zona de alfarrabia e outra de livro novo. Juntámos tudo. As pessoas vêm escolher e, do autor que querem, podem ter um livro recente ou um em segunda mão.

Então, temos todas as novidades e os fundos de catálogo que fazem sentido na nossa linguagem, tentanto ter uma relação de proximidade com os editores. Tentamos fazer isso transversalmente, com os grandes e com os pequenos, com os independentes e com os não independentes. Fazemos isso para criar aqui uma linguagem. Ou seja, podemos afirmar que gostamos de todos os livros que aqui temos. De uma maneira ou de outra. Do texto, do autor, do projeto, do que for. Temos aqui uma curadoria muito importante, livro a livro.

 

Para escrever ou para ler, hoje, temos de retirar outra coisa. A nossa vida agora é isso, são cedências. Há uma coisa que eu não vou fazer para ler ou para escrever. Ou até para ir ao cinema. Temos que fazer menos de certas coisas para fazermos mais de outras.

 

Que outro negócio independente em Lisboa recomendarias?

Lisboa é uma cidade com muito poucos negócios independentes, cada vez menos.

O comércio local não tem muito apoio. Uma livraria, ou qualquer outro negócio [independente], é encarado por um poder local como uma loja privada, um negócio que não pertence à esfera do público. E isto é um problema nas livrarias que, acreditamos, têm uma característica diferente de outros negócios: são espaços de cultura, não são só espaços de comércio. São sempre espaços de comércio, porque senão nós não pagávamos as nossas contas e é isso que estamos aqui a fazer, a vender livros. Mas não estamos só a fazer isso. A maioria da nossa programação não tem fins comerciais diretos, são conversas sobre livros, são conversas culturais. Isso é algo que deveria mudar no nosso país.

Portanto, uma coisa que em Lisboa é muito forte são as livrarias independentes, o que é incrível. Nós às vezes até brincamos com isso: continuam a abrir! Nós temos tantas dificuldades, mas não deixa de haver alguma esperança nessa abertura.

Tens uma livraria de viagens, a Palavra de Viajante, uma livraria de poesia, a Poesia Incompleta, tens uma livraria de banda desenhada, a Tinta nos Nervos. Tens duas livrarias infantis, tens livrarias alfarrabistas, tens livrarias de livros ingleses. Temos uma oferta muito grande: um turista que goste de livros, uma pessoa que venha cá visitar a cidade, consegue fazer um mapa a pé a passar por imensas livrarias!

 

Acabamos de celebrar o Dia da Mãe. O que é que recomendarias para oferecer a uma mãe?

Gosto muito dessa pergunta! Tenho estado a fazer uma pesquisa, recentemente, sobre a questão da maternidade na literatura. E aquilo que acho mais importante, em vez de livros que tenham uma ligação direta à maternidade, são aqueles livros que provoquem o pensamento, o questionamento. Que façam olhar para a maternidade fora de todos aqueles preconceitos sociais, mais limitativos, daquilo que somos enquanto mães. Nesse sentido – e arrisco que as mães sofram muito com este conselho! -, sugiro A Trilogia da Paixão. É um livro sobre a “maternidade”, muito entre aspas, e muito mais do que isso. A própria autora diz que os três livros abarcam três dimensões diferentes da maternidade: o filho bebé, a mãe e, depois, o filho adolescente.

É um livro fortíssimo. Para mim, é um dos grandes lançamentos dos últimos anos. Um livro absolutamente marcante, naquilo que, para mim, interessa na literatura: Ariana Harwicz questiona tudo. Põe tudo em cima da mesa e diz: “nada do que vocês pensaram até hoje vai estar neste livro. Vai estar outra coisa.”. Isso é muito perturbador, há pessoas que não aguentam. Mas, quem consegue ultrapassar aquela barreira, encontra literariamente um portento, um livro absolutamente estrondoso. Não há tabus naquele livro e isso, para mim, é muito interessante.

Que outros livros da Penguin costumas recomendar?

Foi uma grande surpresa quando publicaram A Terra Delas, de Charlotte Perkins Gilman, nos Penguin Clássicos. Primeiro, gosto muito da coleção. É uma coleção muito grande e isso, às vezes, pode prejudicar a comunicação, mas há ali livros que realmente faziam muita falta.

É um livro que eu tinha lido há pouco tempo e que me tinha fascinado imenso. Primeiro porque o livro mais conhecido da autora é sempre O Papel de Parede Amarelo, e foi muito inteligente juntar A Terra Delas, porque esses dois livros apresentam duas questões muito importantes dentro do tema da maternidade.

 

Hoje em dia, estamos fechadas num prédio, sozinhas com uma criança, a enlouquecer, e ninguém repara.

 

O Papel de Parede Amarelo  fala da depressão pós-parto, um tema impossível de se pensar no início do século XX, e que hoje está muito em cima da mesa. O Terra Delas fala de três homens que apanham um avião e vão para um país onde ouviram dizer que há dois mil anos não havia homens. Elas multiplicavam-se apenas como mulheres. Os três têm uma cultura muito diferente e, quando chegam lá, encontram aquela sociedade sem homens. Há um que não acredita, acha que os homens estão escondidos algures.

A Charlotte Perkins Gilman é uma escritora muito importante do início do século XX, ao nível do ensaio. Toda a área do ensaio dela é muito importante, na época e hoje em dia. Este livro é de 1915 e é completamente atual e é quase um ensaio, porque eles aprendem as línguas uns dos outros e ficam a conversar sobre o que é uma sociedade feita de mulheres, o que é que muda. Para mim, a grande conclusão não é “as mulheres são melhores do que os homens”. Aquela sociedade tem uma aparência muito tranquila e muito perfeita mas não é por elas serem mulheres, é porque retiraram o patriarcado. O patriarcado não são os homens, são homens e mulheres numa sociedade que diz que há uma hierarquia e que essa hierarquia tem que ser respeitada. Para existir uma hierarquia, aquele que domina tem que provar ao dominado que ele tem de ser dominado. Tem de ir provando. Foi isso que foi feito às mulheres. Se a sociedade não estivesse constantemente a dizer que as mulheres realmente são menores, nós não tínhamos achado que éramos menores durante tanto tempo.

O que A Terra Delas mostra é que essa sociedade não tinha esse elemento hierárquico. Também é um livro muito interessante para o dia da mãe, porque elas criavam as filhas na comunidade. Portanto, os filhos pertenciam a uma mãe mas, a partir do momento em que nasciam, pertenciam à comunidade, que é uma coisa que nós dizemos que se perdeu também ao longo do século XX. Hoje em dia, estamos fechadas num prédio, sozinhas com uma criança, a enlouquecer, e ninguém repara. O livro reforça essa necessidade de nos rodearmos de pessoas, para criar estas aldeias, para criar os filhos.

Depois, A História da Arte Sem Homens, da Katie Hessel. A autora é muito interessante, é muito engraçada e está a fazer um trabalho ótimo. O livro também criou muitos desconfortos. E ainda bem que criou! Ela referir a questão dos homens no título, graficamente, presente de forma discreta, até é engraçado. Todas estas questões são importantes, mesmo que falhe, mesmo que haja coisas que ela diz que até para uma feminista não fazem muito sentido – o livro teve essas críticas -, o trabalho dela foi fundamental e veio do sítio certo. A autora percebeu um dia: ‘eu só estou a falar de homens quando falo de arte’. Percebeu isso sozinha e é um trabalho militante que faz sozinha. Abriu uma conta de Instagram, que é muito interessante, e também o podcast. Este livro culmina esse trabalho de retirar os homens para sobressair as mulheres, porque os homens nunca vão desaparecer da história da arte, e ainda bem. Eles estão lá, eles fizeram a história da arte, mas elas também. Vamos misturá-los na nossa cabeça e na nossa forma de ver o museu. Já vamos ser mais críticos, já vamos ver as coisas de outra maneira. Para fazer esse trabalho, às vezes, é preciso que seja polémico, radical. É um bocadinho o trabalho que faz a [Livraria] Greta, por exemplo.

E gosto muito, também, da Cláudia Andrade. Na literatura portuguesa contemporânea, ela marca pela diferença. É contista, que é uma coisa que também gosto muito, e é muito diferente, por quebrar muitas regras, por falar de assuntos muito pouco usuais daquilo que esperamos da literatura.

 

Achas que há espaço para o conto em Portugal?

Não havia… Tivemos uma época em que eles eram considerados menores. Mas acho que houve um momento de mudança. Vou dizer isto, que é um bocado polémico, mas… não vou dizer que é mais fácil escrever um romance do que um conto, mas, num romance, tens mais espaço para desenvolver uma ideia do que num conto. Portanto, para o conto ser muito bom, é preciso uma arte, não é? Isso é difícil.

Depois, o que aconteceu é que as pessoas ficaram com menos tempo nos últimos anos. A falta de tempo aproximou as pessoas dos contos. Quem compra um livro de contos, não tem de o ler todo de uma vez. Esse efeito muito imediato da literatura, que em muitos casos a pode prejudicar muito, neste caso foi bom, porque as pessoas querem ler um bocado. Então, deixam na mesinha de cabeceira, hoje leem um conto, amanhã leem o outro e pronto.

Não sei se foi pelas razões certas, se é por esta coisa da falta de tempo, esta doença universal que nós temos, que vem do excesso de tecnologias… As pessoas dizem “Ah, eu não tenho tempo para ler.”. Eu digo: ninguém tem. Para escrever ou para ler, hoje, temos de retirar outra coisa. A nossa vida agora é isso, são cedências. Há uma coisa que eu não vou fazer para ler ou para escrever. Ou até para ir ao cinema. Temos que fazer menos de certas coisas para fazermos mais de outras. Os contos, nesse sentido, são capazes de ter aqui ganhado alguma coisa.

 

 

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