Quem nunca teve de aturar um beto de esquerda, um ortoréxico, um terraplanista, um teorizador de conspiração, um cidadão, um saudosista do Estado Novo, um influencer, um fumador, um ex-fumador, um defensor do politicamente correcto, um detractor do políticamente correcto, uma recém-mamã com um blogue, um ecologista, um velho do restelo, as crianças dos outros
É irritante, não é?
Pedro Vieira, vencedor do PEN para primeira obra de ficção em 2012, utente crítico (em todos os sentidos) de transportes públicos, humorista de fino recorte e senhor de uma subtil (chamemos-lhe assim) capacidade de observação do plano socio-politico-antropológico dos indivíduos com quem partilha o espaço social, decidiu levar ao prelo esta breve antologia de tipos de portugueses que nos tiram do sério, que nos fazem questionar as leis básicas do convívio entre indivíduos da mesma espécie, que desafiam as teorias mais progressistas sobre o ser humano, que, em suma, nos dão instintos assassinos.
Um compêndio inestimável para consulta rápida ou leitura demorada, ideal para longas esperas por algumas carreiras de autocarros, com belíssimas ilustrações de todas as subespécies e respectiva catalogação.
Pedro Vieira nasceu em Lisboa em 1975, mas não se nota. Tenta passar por homem do Renascimento, embora as múltiplas actividades em que investe se devam mais à falta de um talento inequívoco. Digamos que está mais perto dos Da Vinci de Já fui ao Brasil do que do génio italiano. É social media manager, porque estas bios não passam sem palavras estrangeiras, e escritor. E faz desenhos e programas na televisão. Mas é sobretudo um vampiro de terceiros, usando transeuntes inocentes para as suas diatribes mais ou menos ficcionadas. É igualmente um frequentador de ruas, vielas e autocarros, o que lhe oferece muita matéria-prima. Casado, com um filho, sofre por vezes dos nervos.
De entre os vários grupos de pessoas em que tenho pensado, aqueles que mais me preocupam são os que se encontram à beira da extinção, seja por compaixão, por exercício de empatia ou por necessidade de ganha-pão. ( ) Muito bem, desses que vamos encontrando com maior dificuldade, tenho um carinho especial pelas pessoas que pedem/dizem/ordenam/intimam «Ó chefe, abra atrás (OCAA)», até pelo humanismo que transbordam de viva voz. Se repararmos com atenção, na esmagadora maioria dos casos, a OCAA faz-se em defesa de terceiros: uma velhinha que demora demasiado tempo na deslocação entre o lugar reservado a gente com mobilidade reduzida e a saída do autocarro, até porque só se levanta no último segundo; o senhor anafado que tem dificuldade em furar por entre a mole humana que enche o veículo; o turista menos tarimbado que desconhece os códigos de entrada e saída nos transportes públicos portugueses. Só muito raramente deparamos com um praticante da OCAA em causa própria. O exercício é sobretudo de alteridade, numa sociedade de indivíduos cada vez mais virados para si mesmos.