Madalena Sá Fernandes: «Uma surpresa inesperada e arrebatadora»

A autoficção de Madalena Sá Fernandes, em Leme, surpreendeu, e quem leu não ficou indiferente, tendo num ano chegado a 4 edições, contratos para o estrangeiro e alcançado o 2.º lugar de Livro do Ano para os livreiros Bertrand. Mas não pensem que as crónicas de Deriva vão ficar atrás. Como disse Inês Maria Meneses no lançamento «A Madalena que fala duas ou três vezes em ovo Kinder, é o verdadeiro ovo Kinder. É uma surpresa inesperada e arrebatadora, com uma escrita que nos vai fazer chorar na tragédia que a vida é, na comédia em que a vida se torna.»

Leia aqui o bonito texto de Inês Maria Meneses, e depois deixe-se também andar à deriva com Madalena Sá Fernandes.

 

Ovo  Kinder

Andei semanas a pairar sobre a escrita da Madalena. Peguei nesta Deriva depois fui ao Leme. Voltei à Deriva. Lembrei-me do tempo em que tentei tirar a carta (há 20 anos) e fui fazer as aulas de condução primeiro e, ao mesmo tempo, tentava estudar o código. Andava animada entre uma coisa e outra. Só que abandonei a carta. O facto de ter uma instrutora chamada  Cristina Campeã e que me mandava mensagens a dizer: ‘Vamos acelerar. Assinado, Campeã’ pode não ter ajudado.

Ao contrário da carta de condução, com a Madalena não desisti, submergi e fiquei ali presa entre o riso e a dor. Curiosamente, foi o humor que venceu e, vencendo o humor, acho que o amor também ganha. Estou sempre a lembrar-me do dia em que a minha filha me perguntou (ela era muito pequenina) se eu me lembrava mais das coisas boas ou más. E eu fiquei em silêncio a processar, porque não lhe queria dizer que eram as más que mais facilmente me vinham à memória.

O silêncio da Madalena ganhou forma, palavras, uma escrita que nos atira ao chão e nos vai buscar outra vez, que nos magoa e nos dá um beijo a seguir. É uma sedução forte, porque não é estratégica. A Madalena é muito inteira na escrita. Sabe ser e a escrita dela é como uma flor que se abre nas nossas mãos. Não queria tornar isto agora profundo, mas ela é verdadeiramente profunda, sendo a miúda que cresceu selvagem, como ela conta, vendo a beleza da mãe, seguindo os passos da avó, descobrindo que no sítio dos hambúrgueres queimados afinal não havia bonecos do McDonalds, era o pai que os levava e entregava ao empregado do restaurante, fazendo-a acreditar que aquele sítio era mesmo o Mcdonalds. Depois, ela descobriu, e os hambúrgueres queimados continuaram a ser muito bons e, arrisco eu, seguramente melhores em qualidade do que os outros. Esta história é comovente. Mas tem hambúrgueres queimados.

A Madalena gosta da verdade e está disposta a ir buscá-la, doe o que doer.

Várias vezes está escrito neste Deriva, apego ou apegar. Retive, sublinhei. Quando pensamos que estamos a ler crónicas do desapego, porque desprendidas, cheias de humor, na verdade o apego está todo lá: a avó, os pais, a Luísa. Até o Jorge Humberto, a Gracinda, os professores, as viagens, os livros, as filhas, a melhor casa de sempre, mesmo sem tempo para que a Madalena pudesse decorasse o código postal, a pomada para as melgas, a Bordeira, São Pedro de Moel. O casaco que não foi com ela para a feira popular, o tiro na perna. São sempre crónicas do apego, até quando ela quer estar sozinha. Passo a citar: “A verdade é que estar sozinha pode ser ótimo. Devia haver uma palavra para a solidão boa.”

Até quando a Madalena reivindica a sua solidão, está a praticar o apego, mesmo que seja a mesma pessoa que escreve a dada altura: “a minha mãe chora sempre no fim do Verão, chora com saudades de quem partiu, chora quando não se lembra da password do Facebook”. A Madalena é tão magnética no conteúdo e na forma que a dada altura, enquanto lia as crónicas dela, eu já queria ser adotada pelos pais da Madalena ou absurdamente eu queria ser filha da Madalena.

A Madalena leva-nos para um ringue e ficamos sem saber se vão chover flores bonitas ou palavras pontiagudas que nos magoam porque são verdadeiras. Há uma certeza, vamos sair dali KO.

A Madalena que fala duas ou três vezes em ovo Kinder, é o verdadeiro ovo Kinder. É uma surpresa inesperada e arrebatadora, com uma escrita que nos vai fazer chorar na tragédia que a vida é, na comédia em que a vida se torna.

Podia dizer mil coisas sobre a Madalena, a sua letra redondinha e certa que não está à vista de todos e onde se esconde o apego, a coragem – tu és tão corajosa –  a visão detalhada do outro e do mundo, o humor tão desconcertante, os livros todos que leu, a Madalena é do Lacan e da Nintendo, é o que ela quiser. Eu invejo a forma como se deixa ir. Vai e fica e volta quando quer. Ela sabe bem a hora dela.

E esta é a hora da Madalena.

Obrigada por me teres escolhido.

 

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