Uma remota comunidade religiosa, uma sucessão de abusos sexuais, uma reunião secreta entre mulheres e a escolha que pode vir a mudar um destino. Inspirado numa história verídica, eis o romance que trouxe para a ribalta a escritora canadiana Miriam Toews, romance baseado num acontecimento que a autora não podia calar. Pela monstruosidade dos factos e pela circunstância de Miriam ter sido criada numa comunidade menonita, com muitas semelhanças em relação àquela que é retratada nesta narrativa.
A ficção com tanto de real imaginada por Miriam deu origem ao filme homónimo A Voz das Mulheres, vencedor do Óscar para Melhor Argumento Adaptado. O que levou esta história revoltante – e ao mesmo tempo marcada por um sentido de justiça – a ainda mais gente. Esta ano, a obra mais badalada de Miriam Toews, publicada originalmente em 2018, chegou finalmente às mãos dos leitores portugueses, cortesia da chancela Alfaguara.
O livro
Certa noite, oito mulheres menonitas reúnem-se num celeiro para um encontro secreto. Nos últimos anos, mais de uma centena de mulheres pertencentes à mesma comunidade foram repetidamente violadas durante a noite por «demónios» que as castigavam pelos seus pecados. A terrível verdade, contudo, é que os abusos eram perpetrados a partir de dentro, da sua própria colónia. Depois desta descoberta, decidem proteger-se, e às suas filhas, e pôr fim aos abusos.
Quando os homens se ausentam da colónia, estas mulheres, todas iletradas e incapazes sequer de falar a língua do país onde vivem, terão de fazer a escolha mais difícil: permanecer no único mundo que conhecem ou arriscar a fuga para o desconhecido e a liberdade.
Miriam Toews, baseando-se num episódio verídico, conta-nos uma história plena de aspereza e comoção: uma fortíssima experiência de superação e fraternidade, de combate pelo poder de decidir o próprio destino e de afirmação do lugar próprio das mulheres.
A autora
Miriam Toews nasceu na pequena localidade de Steinbach, Manitoba, em 1964. A sua identidade e as suas preocupações enquanto criadora ficariam marcadas pela infância passada num contexto vincadamente religioso, com regras muito próprias, num cenário apartado da vivência mais mundana experienciada nas comunidades ocidentais seculares e laicizadas. Miriam é descendente direta dos primeiros colonos de Steinbach, que chegaram a Manitoba em 1874, vindos da Ucrânia. Os seus pais, ambos seguidores do credo menonita e membros da comunidade Kleine Gemeinde (um ramo desta crença fundado no Império Russo) criaram-na neste contexto particular, embora menos apartado da contemporaneidade do que aquele que inspirou A Voz das Mulheres. Na colónia boliviana de Manitoba, na qual várias mulheres menonitas foram violadas entre 2005 e 2009, com recurso sistemático a tranquilizantes, não havia lugar a comodidades como eletricidade, veículos motorizados ou espetáculos de entretenimento. Sujeitas a uma atmosfera de superstição e intoxicação psicológica, estas mulheres acabaram por receber de Toews uma “reação pela via da ficção”, uma decisão criativa que pôs a autora a questionar toda uma construção moral com a qual também se relacionou desde muito cedo. E sobre o qual já tinha levado a cabo outras abordagens narrativas.
Miriam Toews abandonou a sua comunidade menonita aos 18 anos, altura em que prosseguiu os estudos, acabando por abraçar desde cedo o ofício da escrita – por via da ficção, mas também por via do jornalismo. Depois de deixar Steinbach, viveu em Montreal e em Londres, tendo-se instalado entretanto na baixa de Toronto, num cenário completamente distinto daquele no qual foi criada. Miriam estreou-se com Summer of My Amazing Luck, e conta com oito livros de ficção e um de não-ficção, Swing Low: A Life, este último dedicado ao tema da doença mental e ao desfecho trágico do seu pai, Melvin Toews, morto por suicídio em 1998. A única irmã de Miriam, Marjorie, acabaria também por suicidar-se em 2010, adensando a atmosfera familiar de uma autora que, via ficção, tem vindo a exorcizar fantasmas pessoais e de terceiros.
Segundo a própria, A Voz das Mulheres, agora publicado em português, foi não apenas uma resposta ao Real; Miriam apresentou-o como um “act of female imagination”, numa época em que Elas se fazem ouvir, ver, notar, depois de séculos (milénios?) de obscuridade. Essa é a vontade desta autora. Esta é a vez das mulheres.