Cara leitora, caro leitor: qual é a probabilidade de este texto que tem diante dos seus olhos ter sido por um software gratuito de Inteligência Artificial, daqueles que geram textos a pedido, teses de mestrado, cartas de amor à Cyrano ou desculpas plausíveis para apresentar em sede de Autoridade Tributária?
Uma probabilidade baixa, diga-se, dada a qualidade jocosa, witty, sem acinte, desta introdução, impossível de encontrar no universo ainda em desenvolvimento dos Machine Learning Models. Mas é tudo uma questão de tempo, na verdade, tal como todos temos podido testemunhar. Este autêntico salto quântico na relação da Humanidade com a Tecnologia tem sido uma preocupação constante do historiador e ensaísta Yuval Noah Harari ao longo dos últimos tempos, tendo vindo a ser aflorado em entrevistas, conferências e artigos na imprensa internacional de referência. Agora, chegou a altura de tratá-lo em livro, de forma sistemática e original, de forma informada e com um ponto de vista, no estilo e profundidade a que Harari já nos habituou em trabalhos anteriores. Nexus, volume prestes a chegar às livrarias, apresenta-se como uma História Breve das Redes de Informação, da Idade da Pedra, como dizemos ali acima no título, até a esta era (quase) dominada por chatbots, aplicações que geram imagens a pedido e algoritmos que parecem saber tudo sobre nós e sobre aqueles que nos rodeiam. Um caminho inevitável? Um caminho indesejável? Uma pista: o melhor é não perguntar à Siri ou à Alexa, que elas podem ter uma visão enviesada sobre o tema.
O livro
No princípio era o Verbo, mas agora são as máquinas que se propõem conjugá-lo, tomando o lugar do Deus Omnisciente. Reformulando: no princípio era o Verbo, e um pouco depois o Livro, que continua a ser o melhor instrumento de transmissão de saber, com a vantagem de nunca lhe faltar a bateria e de não precisar de wi-fi. É através desse instrumento que Yuval Harari regressa com uma nova obra de grande fôlego ensaístico sobre a viagem da nossa espécie até à Idade da Informação (outra pista – tem sido atribulada) e as escolhas urgentes que temos de tomar para sobreviver, é essa a palavra e prosperar. Ao longo dos últimos cem mil anos – um período de tempo insignificante em termos da longevidade do planeta, mas decisivo em termos de evolução dos destinos da Terra, nós, sapiens, acumulámos um enorme poder, que nos garantiu, entre outras coisas, uma supremacia sobre as outras espécies. Contudo, apesar das nossas descobertas, invenções e conquistas, atravessamos uma crise existencial. O mundo está à beira do colapso ecológico. As tensões políticas agudizam-se. A desinformação abunda. Perante tudo o que alcançámos, porque somos tão autodestrutivos?
Sob a ampla lente da história da humanidade, ponto de vista que Harari tem tomado desde o início, Nexus analisa o modo como o fluxo de informação nos trouxe até aqui. Começando na Idade da Pedra, passando pela canonização da Bíblia, a revolução da imprensa, a ascensão dos meios de comunicação social, até ao ressurgimento do populismo, o autor convida-nos a refletir sobre a relação complexa entre informação e verdade, burocracia e mitologia, sabedoria e poder. Ao mesmo tempo, decompõe a nova era da inteligência artificial (IA), que parece carregada de uma energia vital e imparável, por ação nossa; os seus méritos e também sérias ameaças que essa inteligência nos traz, alertando para as escolhas urgentes que se perfilam à nossa frente. O autor defende que estas ferramentas nos apresentam um desafio sem precedentes, defendendo a necessidade de profunda regulação, como acontece com os automóveis ou os medicamentos. Caso contrário, Harari entende que a IA pode ser o “T-REX que destruirá a democracia”, por se tratar da primeira ferramenta que pode tomar decisões por si própria. E sem sabermos as consequências dessa singularidade. Está tudo em aberto, logo, pelo sim pelo não, será bom lermos sobre o assunto. De preferência ler algo escrito por seres pensantes de carne e osso.
Sapiens
Yuval Harari chegou até nós através de um livro que mudou a história dos ensaios para o grande público. Em Sapiens – História Breve da Humanidade, pudemos ler sobre o fogo, que nos deu poder; sobre a agricultura, que aumentou o nosso apetite; sobre a mitologia, nas suas diversas peles, que ajudou a manter a lei e a ordem necessárias ao progresso da Civilização; sobre o dinheiro e os seus mecanismos de confiança; e sobre a ciência, que nos elevou à condição se seres letais com arbítrio sobre a vida das outras espécies.
Em Sapiens, lançado internacionalmente em 2014, o autor recorre a ideias da paleontologia, antropologia e sociologia, para analisar os nossos principais saltos evolutivos, desde as espécies humanas que coexistiam na Idade da Pedra até às revoluções tecnológicas e políticas do século XXI – que nos transformaram em autênticos deuses, capazes de criar e de destruir. Trata-se de uma obra desafiadora, desconcertante e inteligente, com uma perspetiva única e original sobre a nossa História e o impacto do ser humano no planeta; um livro (o tal instrumento transmissor de conhecimento) capaz de nos pôr pensar, e que tem encontrado milhares de leitores a quem inspirar. Agora, dez anos depois, o caso (e a humanidade) mudam de figura. Corremos o risco de ser inspirados por algoritmos geradores de conteúdos. De conversarmos com máquinas sem sequer o sabermos. Harari defende que a inteligência artificial pode “destruir a conversa” comum entre humanos, que é essencial para a democracia. “A conversa é feita com linguagem” e tem como base “a confiança”.
E a cara leitora, e o caro leitor, confiam num interlocutor com um coração feito de lítio?