A Nuvem de Letras orgulha-se de publicar uma nova coleção com uma história de enorme sucesso em França (onde nasceu e já foi adaptada a série televisiva), e um pouco por todo o mundo.
Chien Pourri é o título original, e em Portugal já é o nosso Cão Pulgão. Falámos com Colas Gutman, o autor do texto e uma das metades da dupla de criadores que dá vida a estas histórias cheias de humor e humanidade. A outra metade é Marc Boutavant, desenhador de aventuras com um olhar repleto de ternura. Afinal, há que ver o caixote do lixo sempre meio cheio.
O Chien Pourri nasceu em 2013 e é há vários anos um sucesso em França e noutros países. Mas só agora chega a Portugal, e por cá irá chamar-se Cão Pulgão. Podem apresentá-lo brevemente aos leitores portugueses?
O Cão Pulgão é um cão que vive num caixote do lixo com o seu amigo Gato Chato, um gato achatado. Dito assim, não parece muito, mas o facto de viver num caixote do lixo faz com que muitas vezes tenham vontade de sair e conhecer o mundo. O problema com o Cão Pulgão é que, tal como uma tartaruga, as pessoas reparam na casa de lixo que leva às costas. É estigmatizado e rejeitado, mas graças à sua ingenuidade transforma a crueldade do mundo em cenas joviais e engraçadas.
Sabemos que há uma grande cumplicidade entre autor e ilustrador. Como descrevem a vossa relação de trabalho?
Somos um pouco como o Cão Pulgão e o Gato Chato, mas não vivemos no mesmo caixote do lixo! Por vezes, encontramo-nos no café para discutir os nossos dois heróis favoritos. Primeiro invento as aventuras do Cão Pulgão e depois passo a bola ao Marc que por sua vez as interpreta. Tenho a impressão de que o nosso inconsciente está em sintonia com as nossas personagens! Cada um de nós as embeleza à sua maneira, com mais ou menos ternura e humor negro.
Estas histórias têm ternura, humor, amizade, mas também um certo lado sombrio, dramático. Como equilibram estes dois lados?
Isso acontece naturalmente. Para ser engraçado, são precisos desafios fortes e obstáculos ancorados à realidade, caso contrário pode-se sempre dizer «mas qual é o objetivo? Ok, é engraçado, mas quem quer saber disto?» A ternura e o humor vêm com o lado negro e vice-versa. Mas nunca é totalmente propositado, são as aventuras do Cão Pulgão e do Gato Chato que impulsionam a história; nós somos apenas as rodinhas dos seus caixotes do lixo que os fazem seguir em frente.
Sob uma capa de ingenuidade, o Cão Pulgão insiste em manter o otimismo e acredita sempre que coisas boas vão acabar por acontecer. É mesmo ingenuidade ou uma defesa contra a dureza do mundo?
Ambos. É uma forma de olhar para o mundo e, por vezes, não o ver como ele é. O humor absurdo é uma forma de amenizar um pouco as coisas para mim e para os jovens leitores. Para o Cão Pulgão uma lixeira pode ser motivo de festa. É ingénuo, sim, mas é ver o caixote do lixo meio cheio e permite ver o reverso de uma situação que parece desesperante.
A amizade entre o Cão Pulgão e o Gato Chato é verdadeiramente inspiradora, e o contraponto entre as duas personagens é uma fonte inesgotável de humor e encanto. São os amigos que nos salvam?
O lado racional do gato salva muitas vezes a estupidez do cão intrépido! É o Gato Chato que impede o Cão Pulgão de se espalhar demasiado ao comprido, e é, ao mesmo tempo, ele que lhe põe a cabeça no lugar e o acompanha nos seus desejos mais loucos – muitas vezes, ser um cão como os outros. São amigos inseparáveis, com personalidades muito diferentes, mas com a mesma aspiração: tirar um pouco a cabeça da sarjeta e saborear as alegrias da vida.
Bullying, abandono, pobreza, desigualdade — os temas subjacentes ao enredo estão longe de ser leves, mas são tratados de uma forma esperançosa, sempre com notas de humor. Devemos falar sobre tudo com as crianças?
Sim, claro, podemos falar sobre tudo com as crianças, mas não de qualquer maneira! Contar histórias com humor permite iniciar uma conversa em vez de puxar um assunto e tentar impingir mensagens à força. Procuro partir do princípio de que as crianças têm uma inteligência emocional mais flexível do que a dos adultos. Eles enfrentam de caras a injustiça da sociedade, seja em casa, na rua ou na escola. Porque é que algumas pessoas têm dinheiro e outras não, umas têm trabalho e outras não, umas têm pais e outras não, etc.? Aos poucos, eles vão-se interrogando e vão-nos fazendo as perguntas certas. As respostas podem ser dadas em tom erudito ou com um certo humor. Isso não impede de pensar, antes pelo contrário. Escrever com humor não impede de refletir, não significa apenas troçar do absurdo do mundo. Acima de tudo, permite sentir e não cortar nos afetos.
Sabemos que visitam muitas escolas e recebem muitas perguntas e comentários por parte das crianças. Podem partilhar um pouco dessa experiência?
Uma questão que nos colocam frequentemente é sobre o princípio e o fim do Cão Pulgão. Como é que tudo começou e quando terminará? Tenho sempre dificuldade em responder a esta questão porque não existe um só ponto de partida, mas vários, e não posso saber antecipadamente o final das suas aventuras (18 volumes até ao momento).
A ideia do Cão Pulgão surgiu-me noutro livro que escrevi uns anos antes, Rose. Tinha uma menina que estava a ler um livro inventado chamado Cão Pulgão. Peguei nesse livro completamente inventado e, juntamente com o Marc, transformei a imaginação num objeto real.
Outra pergunta que surge frequentemente: “vocês são famosos?» Muito menos que o Cão Pulgão, e ainda bem que assim é! Estou na sombra do caixote do lixo, e isso cai-me muito bem! A personagem que importa não é aquela que segura a trela, mas a que está na outra ponta.
O Cão Pulgão tem perfil de anti-herói (desgraçado, feioso, pouco inteligente…), mas tem uma alma bondosa e gentil, como só os verdadeiros heróis. Como veem o Pulgão no panorama atual e na história da literatura infantil?
Não sei, ele segue os outros livros como um cão… e às vezes atravessa a rua sem olhar! O que quero dizer é que ele vem de todos os outros livros, e não apenas de livros infantis; por vezes mesmo em reação a uma literatura que é demasiado insípida ou demasiado pedagógica – os livros de desenvolvimento pessoal para crianças sobre como gerir as emoções, a raiva, por exemplo, assustam-me muito.
Não classifico verdadeiramente o Cão Pulgão como um herói ou um anti-herói. Para mim, ele é apenas um esfregão que carrega o peso da sociedade e dá toda a sua essência (desculpem a imagem!), mas é graças ao seu físico pouco atraente e à sua amostra de cérebro que faz as pessoas rir.
Quais são os vossos autores de referência? E o que liam na vossa infância?
René Goscinny, quando era criança (de Astérix ao Menino Nicolau) e depois Gotlib, na adolescência. E provavelmente outros autores, mas que me marcaram menos.
Têm muitas histórias do Cão Pulgão guardadas? Como o imaginam o futuro dele?
Enquanto nos estivermos a divertir, vamos continuar! E espero que ele tenha um final tragicómico e deixe algumas pulgas e comichão em todos aqueles que lhe tiverem deitado as mãos.