O romance que levou à proibição dos livros LGBTQIA+ na Rússia

Em junho, celebra-se o Dia Internacional do Orgulho LGBTQIA+, uma ocasião que relembra a batalha pelos direitos e igualdade dos integrantes desta comunidade à volta do mundo. Neste mês tão importante para a história da comunidade queer, a Secret Society publica o romance gay que desencadeou uma das maiores repressões à representação LGBTQIA+ na Rússia, onde livros como este são atualmente proibidos. Um Verão de Lenço Vermelho, é uma história de amor, coragem e resistência que condena  a censura e a repressão dos que amam com orgulho.

Elena Malíssova e Katerina Silvánova são as autoras que depois de enfrentarem ameaças de morte, foram forçadas a fugir da Rússia. Convidámos as autoras a falar-nos um pouco sobre como foi escrever este livro e os desafios que enfrentaram depois da publicação do mesmo. 

 

“Um Verão de Lenço Vermelho” é um livro profundamente sensível e comovente. O que é que vos inspirou a contar esta história de amor entre dois rapazes durante a época soviética?

Quando começámos a escrever este livro, não éramos autoras populares. Costumávamos publicar as nossas histórias online gratuitamente, e talvez cem ou duzentas pessoas as lessem.

A ideia para este livro surgiu pouco depois de nos conhecermos, durante uma conversa normal. Ambas trabalhávamos muito (a Elena na área de IT e a Katerina nas vendas) e tínhamos pouco tempo para escrever – e pouca energia para a vida em geral. Tudo começou com uma pergunta: “Gostava muito de ler uma história queer apaixonante e comovente sobre um primeiro amor, que se passasse no verão, e talvez num campo de férias. Sabes de alguma coisa do género?” Procurámos, mas não encontrámos nenhuma história desse género escrita em russo. Por isso, decidimos escrever uma, tanto quanto conseguíssemos entre os nossos trabalhos, pouco a pouco, cena a cena, ou capítulo a capítulo. E foi assim que o fizemos: escrevemos e partilhámos pequenos fragmentos uma com a outra. Parece que o próprio formato deste tipo de escrita nos inspirava, tal como o desejo de saber o que iria acontecer a seguir. Claro que já tínhamos um enredo geral em mente e uma noção geral de como a história iria terminar. Mas, ao longo do caminho, surgiram novos pormenores, diálogos, piadas e conflitos – a história ganhou vida, e isso foi maravilhoso.

Optámos por escrever sobre dois rapazes e durante a época da União Soviética, porque não encontrámos nada semelhante, apesar de ser um assunto muito importante para a comunidade queer, especialmente nos países pós-soviéticos. A URSS é um período histórico relativamente recente e é crucial compreender como era a vida das pessoas queer nessa altura – como se percecionavam a si próprias, como a sociedade as percecionava e que consequências terríveis isso tem ainda à luz dos nossos dias: desde a homofobia quotidiana às leis desumanas e à repressão.

Um Verão de Lenço Vermelho é uma história bastante impactante sobre o primeiro amor – mas há também um lado bastante amargo da realidade que rodeava estas personagens.

 

Como é que conseguiram transmitir as emoções de dois rapazes adolescentes especialmente tendo em conta o contexto histórico e cultural da URSS dos anos 80?

Bem, não foi uma tarefa muito difícil. Muitas pessoas sabem como é o primeiro amor – ingénuo, cauteloso, incerto, mas sempre muito intenso. E, a este respeito, pouco importa o período histórico ou o género em causa.

O contexto cultural do final da União Soviética também nos era bastante familiar. Apesar de não o termos vivido, os seus ecos acompanharam-nos durante grande parte da nossa educação. Pode dizer-se que crescemos entre as ruínas dessa época – vimos em primeira mão todas as suas consequências. Estávamos rodeadas de artefactos e paisagens do período pós-soviético. A geração mais velha contava-nos histórias da sua juventude e as nossas casas estavam cheias de fotografias antigas. Até o campo que descrevemos no livro é um sítio real na região de Kharkiv, na Ucrânia. A Katya frequentou-o várias vezes entre 2000 e 2005 – foi, em tempos, um campo de acampamento de pioneiros.

As lacunas no nosso conhecimento, próprio por não termos vivido estes tempos na primeira pessoa, foram compensadas por documentários, livros de ficção e filmes.

 

O livro teve um impacto muito grande na vida de muitos leitores LGBTQIA+ por todo o mundo. Estavam à espera que atingisse este sucesso internacional?

Não! Como mencionámos anteriormente, escrevemos este livro apenas uma para a outra – e, sinceramente, nunca imaginámos que ela fosse ter repercussões junto de tantas pessoas. Pensámos que o tema de um acampamento de pioneiros e da União Soviética não seria assim tão interessante, especialmente para os leitores mais novos.

Durante o primeiro ano da sua existência, a história de Iurka e Volódia esteve disponível online e teve cerca de 200 gostos. Depois, um leitor partilhou-a no Twitter – e, a partir daí, tudo mudou.

Sinceramente, nunca sonhámos que o nosso livro viesse um dia a ser publicado, e muito menos em vários países. Além disso, não esperávamos receber tantos comentários de pessoas que dizem que este livro as ajudou verdadeiramente: para alguns, foi uma forma de escapar a uma realidade dura e mergulhar numa atmosfera mais agradável; para alguns, ajudou-os a manterem-se à tona e a evitar a depressão; e para outros, ajudou-os a compreender algo importante ou a mudar a forma como se veem a si próprios – ou como se relacionam com a comunidade LGBTQIA+. Isso é muito importante para nós.

 

Como foi o processo de escrita entre as duas? Como geriam as diferenças criativas?

Praticamente não temos desacordos e, se os tivermos, são resolvidos através de uma conversa calma e fundamentada. Somos ambos muito parecidas – não tanto no carácter, mas nas nossas opiniões sobre a vida e a criatividade. E, acima de tudo, somos verdadeiras amigas. É por isso que trabalhar nos livros em conjunto não é uma questão de conflitos e de cabo de guerra, mas sim de um ótimo resultado que nos satisfaça a ambos.

 

Houve alguma dificuldade específica em escrever sobre o amor queer num contexto histórico opressivo?

Achamos que a principal dificuldade foi encontrar informação sobre as nuances da vida na comunidade LGBTQIA+ durante a época soviética. Naquela altura, era um tema muito tabu, pode dizer-se que as pessoas queer eram praticamente invisíveis para a sociedade e, nos momentos em que se tornavam visíveis, havia negação, incompreensão, ódio e uma tendência para encobrir e até ignorar a sua existência. Isto fez com que haja pouquíssimas publicações acerca do tema, tanto nos meios de comunicação social, como historicamente.

 

Enfrentaram muitos obstáculos ao tentar publicar este livro na Rússia? Houve editores que hesitaram na compra devido ao conteúdo da história?

Na Rússia, tínhamos apenas uma editora, a Popcorn Books, que era independente, pequena e muito corajosa na altura. Quando assinámos o contrato, em 2020, já tinham publicado muita literatura queer – Andre Aciman, Becky Albertalli, Nora Sakavic e Adam Silvera – e livros sobre temas controversos, como xenofobia e feminismo. Posto isto, não tivemos dúvidas de que seria com eles que iriamos publicar a história de Iurka e Volódia.

Já as editoras estrangeiras não têm dúvidas, porque para os países modernos não há nada de errado com as pessoas LGBTQIA+.

 

O livro foi um grande alvo de censura e condenação pública por parte das autoridades políticas russas. Em algum momento tiveram medo das consequências que poderiam surgir?

É praticamente impossível estar na Rússia e fazer o que quer que seja sem sentir medo todos os dias. Por isso, sim, claro que tivemos medo e apercebemo-nos de que a publicação do livro poderia ter consequências. No entanto, não imaginávamos que pudesse tomar estas proporções.

 

Que importância atribuem aos livros LGBTQIA+ nos dias de hoje?

São muito, muito importantes. Não estamos por dentro do panorama da comunidade LGBTQIA+ em Portugal e noutros países onde o nosso livro foi publicado, mas sabemos exatamente qual é a escala da homofobia nos países pós-soviéticos. Através do exemplo do nosso livro, vimos que a literatura pode mudar as atitudes das pessoas. Chegaram-nos reações de leitores que costumavam tratar a comunidade LGBTQIA+ com repulsa, incompreensão e, até mesmo, ódio, mas que, depois de ler o nosso livro, perceberam que estas pessoas não são monstros, que amam, sentem e querem ser aceites tal como todos nós.

 

A um nível mais macro, qual é o estado atual dos livros LGBTQIA+ na Rússia?

Não existem. Na Rússia é completamente proibido mencionar pessoas LGBTQIA+ ou símbolos do arco-íris em livros, filmes, séries de televisão, anúncios, vídeos musicais, etc. Chega a ser absurdo: uma pessoa pode ser acusada de “propaganda LGBT” por usar brincos com as cores do arco-íris, ou pelo facto de uma fotografia mostrar dois homens sentados lado a lado num sofá a tocar nos ombros um do outro ou a trocar presentes. Pior, agora o chamado (nos documentos legais russos) “Movimento Internacional LGBT”, que não existe, é reconhecido como extremista, o que significa que qualquer exibição pública de algo relacionado com a comunidade LGBTQIA+ – desde um crachá até à capa do nosso livro – pode levar a um processo criminal.

 

Há alguma mensagem que gostariam de transmitir para os leitores LGBTQIA+ em Portugal que se sentiram tocados com a vossa história?

Antes de mais, gostávamos de agradecer a todos os nossos leitores. Se a história de Iurka e Volódia vos tocou, se foi capaz de vos distrair da realidade e de acreditar na bondade – ficamos muito felizes!

Vivemos tempos tão sombrios que, por vezes, parece que o mundo à nossa volta enlouqueceu. Mas lembrem-se, a escuridão é sempre substituída pela luz, e esta luz cada um de nós carrega dentro de si. É muito importante mantê-la e não a perder pelo caminho. Afinal de contas, estamos todos do lado do bem, está nas nossas mãos construir um mundo e um futuro melhor.

 

Nas livrarias a 23 de junho!

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