«O verbo no passado ainda fresco», segundo Geovani Martins

A palavra, o verbo ou mesmo a língua em si é um território sempre em disputa. Sobretudo para nós, oriundos de países colonizados, que aprendemos a pensar e a falar num idioma estranho que nos foi imposto pela força. O passado colonial fez das Américas um continente sem memória, com milhões de afrodescendentes, milhões de filhos dos nossos povos originários, que não fazem a mínima ideia de onde vieram suas famílias, nem mesmo a língua que falavam, o deus que adoravam, a ciência e a filosofia que produziam, milhões de pessoas que não sabem absolutamente nada além do sobrenome herdado de algum fazendeiro.

O sobrenome com que assino meus livros, afetivamente, não me diz coisa nenhuma. No entanto, ele nos conta uma história. Uma história comum que envolve, enlaça e sufoca todos nós, que compartilhamos este mesmo idioma e este mesmo passado. Este sobrenome faz isso porque é justamente isso o que as palavras fazem. Contam histórias, tecem significados, moldam imagens, fabricam memórias. O ser humano é uma espécie que depende da palavra. Nos organizamos dessa maneira e toda a nossa experiência é pautada pelas palavras que nos rodeiam antes mesmo do parto. O nome da família, o endereço, o costume e a crença.

De certa forma, somos constantemente oprimidos pelas palavras. Todas as leis, proibições, pecados, limitações. Todo território objetivo ou subjetivo é demarcado pela palavra. Por outro lado, é através da palavra que encontramos a possibilidade de luta, de busca pela liberdade e felicidade. No fim das contas, nós só precisamos encontrar as palavras certas.

A história do negro, do africano, do ameríndio, é muito maior do que os 500 anos aos quais me refiro. Nossos passos, culturas e expressões vêm de longe. No entanto, sinto que, enquanto não resolvermos as pendências de nosso passado recente, nós, os filhos da diáspora, teremos muita dificuldade pra olhar além. Nesse sentido, é onde vejo que a disputa pelo território das palavras fica ainda mais acirrada.

Por exemplo, na semana passada, fui ao museu de história natural de Lisboa. A primeira exposição que vi se chamava “o impulso fotográfico: (des)arrumar o arquivo colonial” e contava com centenas de imagens produzidas por colonizadores em territórios africanos. A exposição questionava a quem pertenciam as fotos: a quem produz ou a quem é fotografado. Os textos da curadoria refletiam sobre o impacto daquelas imagens na construção do negro na sociedade moderna. Existe um ditado onde se diz que uma imagem vale mais do que mil palavras. É um ditado forte, que sobrevive a passagem do tempo e também a banalização da imagem nas últimas décadas, mas a verdade é que as imagens carregam sempre uma série de palavras e interpretações. Qualquer esforço de semiótica passou pela elaboração de alguma ideia ou afirmação de alguma ideologia.  Tudo isso estava de certa forma escrito nas paredes daquele prédio antigo. Alguns livros de importantes teóricos negros estavam espalhados pela sala, revelando as fontes da tese que deu origem à exposição.

No mesmo museu, vi ainda uma outra exposição chamada “Ilustrare – viagens da ilustração científica em Portugal”. Os desenhos dos animais, paisagens, assim como a disposição das obras, estavam fantásticos, mas logo no início, no primeiro texto da exposição, li algumas frases que condicionaram completamente minha experiência naquelas salas. Segundo a placa, aqueles desenhos eram fruto da GLOBALIZAÇÃO promovida por Portugal, entre África e Américas. Exatamente isso, numa tarde de fevereiro de dois mil e vinte e três, eu vi um texto em Portugal onde o tráfico negreiro e o genocídio de tantos povos aparecem descritos como um fenômeno natural do mundo globalizado. Quase um favor do reino Português ao resto do mundo.

Percebam o tamanho da disputa que acontece em toda a parte. Essas duas exposições ocupam espaço no mesmo prédio, recebem com frequência o mesmo tipo de observador e, dia após dia, travam essa luta através das palavras.

Via Ápia, meu novo livro, é mais um esforço nessa batalha. Se trata de uma contra narrativa de um determinado período histórico, onde disputo pela ressignificação do território da Rocinha e por uma nova construção imagética dos corpos que a compõem. Mas o meu livro é apenas um dos exemplos. Em todo Brasil, nas Américas, em África, assim como na Europa, artistas como eu, filhos da diáspora, vem se esforçando junto com teóricos, advogados, cientistas, políticos, na tentativa de criar novas realidades e possibilidades através da palavra.

Acontece que mudar o mundo sempre vai ser algo cansativo. Sobretudo se não recebemos ajuda  do outro lado da moeda. Ou seja, dos outros herdeiros dessa maldita herança. Não podemos, para sempre, sermos apenas nós, a lutar contra a máquina colonial. Não podemos ser apenas nós, os negros, a lutar contra o racismo, assim como não podem ser as mulheres apenas a lutar contra o machismo ou homossexuais a lutarem contra a homofobia. Essas perversões sociais impedem nossa caminhada rumo ao único progresso possível: a felicidade, a fraternidade, o amor. E como atrapalham a todos nós a possibilidade de existência plena,  necessitam do envolvimento e engajamento de todos, se desejamos realmente alguma mudança efetiva.

Quando se mata uma língua, se mata um mundo inteiro. Tecnologias, crenças, remédios, cosmovisões, histórias. Tudo se perde junto com o idioma. O filósofo e poeta Aimé Cesáre falava sobre como a humanidade regrediu após o período colonial. Estreitou as possibilidades. Ao destruir tantas maneiras de existir e de pensar, o modelo colonial europeu promoveu uma grande perda pra toda a espécie. Para nós, filhos de países colonizados, isso parece cada vez mais nítido. Mas é preciso que o branco, o europeu, é preciso que o inventor do ocidente tenha noção do tamanho do estrago. É preciso que todos nós tenhamos dimensão da perda.

É inaceitável e vergonhoso que ainda hoje, em pleno século vinte um,  vejamos por toda a Europa e até mesmo em suas antigas colónias, homenagens a figuras como Cristóvão Colombo, Vasco da Gama, Pedro Álvares Cabral. Talvez para alguns aqui presentes pode parecer exagero pedir a cabeça dessas figuras agora, mais de quinhentos anos depois. Mas, como eu dizia, eu realmente acredito no poder das palavras e por isso defendo a necessidade de darmos os nomes certos às pessoas e acontecimentos. Até quando vamos enaltecer nossas vergonhas? Até quando vamos relativizar essa tragédia?

O tempo é de construção. Na literatura, nas leis, no léxico. Tudo precisa ser novo se queremos um mundo novo. Mas não pensem que proponho aqui esquecer nosso passado (podem acreditar, eu nunca me esqueceria), proponho que a gente se cobre pra todo dia construir uma história que seja justa com todos nós. Que os escritores brancos também falem sobre o assunto. Que o leitor europeu não apenas nos aplauda e bata em nossas costas no final dos nossos discursos incendiários, mas que tome partido na situação de xenofobia que presencia no metro, ou questione a escola dos filhos que os fantasiou de indígenas, que os ocidentais também questionem as estátuas, os monumentos, o nome das ruas, as expressões coloniais. Comprar livros de autores negros não faz de ninguém antirracista, assim como ler Frantz Fanon não torna ninguém essencialmente anticolonialista. É preciso mais. É preciso agir. É preciso coragem para ter conversas desconfortáveis e sobretudo para se olhar no espelho. Mas, a esta altura, já não existe outro caminho. Afinal, se de fato estivermos interessados em construir qualquer futuro, será inevitável que, finalmente, tenhamos uma conversa honesta sobre o nosso passado.

*Texto da intervenção de Geovani Martins nas Correntes d’Escritas, evento que aconteceu na Póvoa de Varzim entre 14 e 20 de fevereiro de 2023.

Partilhar:
Outros artigos: