O novo livro para crianças escrito por Capicua e ilustrado por Matilde Horta, a dupla que já nos tinha trazido Cor-de-Margarida, vem falar aos mais pequenos de um tema que se tornou premente na nossa sociedade: a crise da habitação. No novo álbum, Como é que um caracol foge de casa?, a lentidão de um velho caracol, cansado de habitar a sua carapaça, contrasta com a azáfama em que vivem os vários bichos com quem ele se cruza, ocupados que estão a tentar garantir o direito básico a uma habitação digna.
Ora, cebolas!
Não nos deixemos enganar pela aparente ingenuidade das histórias protagonizadas por plantas ou animais. Os dois contos ilustrados nascem de um descontentamento, de um incómodo que se agiganta. No primeiro livro, a flor Margarida anda desgostosa e queixosa com a sua cor. Desta vez, temos um caracol que se demora nos lamentos e queixumes por já não poder com a casa às costas.
No seu trabalho para crianças, Capicua procura não simplificar ou infantilizar, seja nos temas, seja na linguagem que aqui oferece uma riqueza invulgar, repleta de interjeições, expressões curiosas, imagens poéticas e vocábulos menos frequentes.
«O livro tem uma dimensão social porque fala muito sobre a noção de privilégio próprio, que acho importante debater com os mais novos. E fala sobre os problemas de habitação. Como é habitual no meu trabalho para crianças, gosto de abordar assuntos sérios, de uma forma lúdica, irónica, engraçada, sem descurar o lado poético da escrita e sem simplificar nem infantilizar», reitera a autora.
Desde o disco-livro Mão Verde (2016), Capicua intuiu que a curiosidade dos mais pequenos é espicaçada por aquilo que desconhecem, ao invés daquilo que já lhes é familiar. Ao escutarem «Desconfia de quem não gosta do Chico Buarque», verso da canção Confio Desconfio, quantos não terão tido o impulso de perguntar quem é Chico Buarque e pedir para ouvir uma música?
A leitura deste livro pode, então, estender-se, demorar-se «como o envelhecimento das pedras», suscitar perguntas sobre palavras difíceis ou expressões desconhecidas, mas não é isso, afinal, que se espera de uma boa história? «Com mil ramos de urtigas!», há pouca paciência para textos desenxabidos ou insípidos que não desinquietam nem provocam.
«É das palavras desconhecidas e dos temas mais profundos que nascem as perguntas, as dúvidas que dão azo às melhores conversas. Aprender novas palavras, pensar sobre o mundo, debater questões complexas, é uma forma muito interessante de educar e este livro pode ser uma ótima forma de estimular isso», acrescenta ainda a autora.
Habitação digna
O caracol avança, rabugento, ameaçando até aderir ao «partido das lesmas». Na sua jornada, vai encontrando vários bichos em dificuldades e «a cada légua rastejada» compreende que a tão falada crise da habitação grassa por todo o lado, dominando as preocupações de todos os animais. Ninguém tem tempo para conversas ou divagações quando a prioridade é garantir um teto por cima da cabeça.
A Matilde Horta coube imaginar os cenários destas vidas atarefadas, desta luta para construir, preservar, melhorar ou encontrar o espaço próprio, a habitação segura e confortável que é o primeiro patamar de uma vida digna. A ilustradora partilhou o seu processo de trabalho:
«Decidido, o caracol parte numa jornada para resolver o seu próprio problema de habitação. E é engraçado pensar que os vários “problemas de habitação” que temos são também os dos animais sempre que as suas casas, ninhos ou tocas são destruídas pelo tempo, pela natureza ou pelas estações. Dei por mim a desenhar cenários, e a imaginar o que teria uma toupeira dentro da sua casa, e como será que um esquilo organiza a sua árvore. Em todos os sítios há animais e as suas respetivas casas! Ilustrar é traduzir em imagens aquilo que nos vai no pensamento.»
Assim vamos conhecendo, sucessivamente, os árduos trabalhos a que se dão a andorinha, a toupeira, o esquilo, a aranha ou as abelhas, numa narrativa cumulativa, tão ao gosto dos mais pequenos, aqui com camadas adicionais de ironia, crítica social e consciência do privilégio.
Este é um livro para crianças que incentiva o pensamento crítico e propõe recursos e ferramentas que as ajudam a compreender melhor o mundo em que vivemos. E que as impele a agir e transformá-lo. Nem que seja a passo de caracol.