Prémio Jan Michalski de Literatura para Karina Sainz Borgo

A escritora Karina Sainz Borgo, publicada entre nós na Alfaguara, venceu recentemente o prestigiado prémio Jan Michalski de Literatura, pela edição francesa do romance O Terceiro País. Romance marcante e profundamente humano, com um olhar único sobre a tragédia das migrações, lançado ente ano em português.

O júri do prémio outorgado pela fundação suíça elogiou o romance pelo seu “poderoso universo ficcional, que combina de forma brilhante várias tradições literárias, como a tragédia grega, o realismo mágico e o western americano, num território imaginário – Mezquite, inspirado na Comala do mexicano Juan Rulfo – povoado por emoções bem reais.

Aqui recuperamos a comunicação de André Gallimard, editor de Karina Sainz Borgo em França, por ocasião da justíssima atribuição do prémio.

 

«Laudatio em honra da laureada, por Antoine Gallimard

 

Senhora presidente, cara Vera Michalski,

Senhoras, senhores,

Estimada Karina Sainz Borgo,

 

 

Como sabem, no ano de 2024 celebra-se o centenário do primeiro Manifesto do Surrealismo de André Breton. Claro que não podemos, de forma espontânea, associar a sua escrita à prosa de Nadja ou de O amor louco. Foi, no entanto, neste famoso manifesto que pensei ao ler as obras de Karina Sainz Borgo Cai a Noite em Caracas e O terceiro país, este último galardoado hoje com o Prémio Jan Michalski. E pensei particularmente nesta passagem muito célebre do Manifesto, quando André Breton evoca o poder “impressionante” das imagens literárias colocadas em prática pelo seu grupo. Claro que, na arte avançada dos surrealistas, este poder está ligado à experiência do fortuito e a uma certa arbitrariedade. Ou seja, a uma abordagem poética da liberdade. Mas o essencial residia no poder evocativo das imagens, na sua capacidade de agarrar o leitor, de o surpreender de uma forma tomada como impossível.

Ao lê-la, estimada Karina, também ficamos muitas vezes sem fôlego, congelados pelas imagens verdadeiramente impressionantes que arranham a espessura negra que ameaça apagar ou engolir as suas personagens. Nos livros que escreve, além das imagens que nos agarram subitamente pela garganta, ficamos deslumbrados com aquilo a que Breton chama “luz especial”, essa centelha nascida do “confronto inesperado e verdadeiramente explosivo de duas realidades distantes”: a das vozes inalienáveis, poderosamente encarnadas, através das quais as suas histórias nos chegam – as vozes das suas magníficas heroínas, claro –, e a de uma sociedade mergulhada na violência política e social, e dominada pelo instinto da morte.

“Aqui fuzila-se como se desbastam árvores”, escreve Antoine Saint-Exupéry, espectador consternado da Guerra Civil de Espanha. Também se desbasta muitíssimo nos seus romances, impregnados do sofrimento contemporâneo da sua terra venezuelana. Mas, nesse mesmo lugar onde as identidades sufocadas se desmembram, basta uma voz, uma palavra, uma comparação insólita, para que surja uma consciência, uma vontade, um corpo, uma linhagem que se opõe à marcha insensata do coletivo rumo à sua própria destruição, insurgindo-se contra os efeitos devastadores da abstração, da uniformidade e da opressão.

Essa liberdade é a própria matéria da sua escrita. Ela irradia das histórias que a Karina conta tanto quanto determina as escolhas de vida – fortemente condicionadas pela crise humana e social que as rodeia – das suas heroínas Adelaida Falcon (em Cai a Noite em Caracas), Visitación Salazar e Angustias Romero (em O terceiro país). Reside aí a força dos seus romances, que devem tanto à substância negra que os inspira como à luz que emanam. Ambos os romances são agora consagrados, depois de, um pouco por todo o mundo, os leitores terem reconhecido neles a matéria de uma grande obra. Uma obra feroz, franca e selvagem, de uma beleza estonteante, que não usa subterfúgios para dizer o que tem a dizer, mas que pondera constantemente sobre os seus meios e os seus fins – não fosse a Karina a grande leitora que é.

É verdade que os seus romances, inspirados na vida real sem se alienarem dela, parecem ter sido escritos do ponto de vista de um pesadelo. São como uma caçada narrada pela presa, o mais próximo possível da matilha que a persegue… Assim é Adelaida, refugiada no apartamento vizinho, condenada ao espetáculo obsceno daquelas que invadiram a sua história íntima e lha expropriaram, observadora e vítima desta revolução que estilhaça vidas como se de serviços de louça se tratasse, e que corrompe almas como bibliotecas devastadas. Há quem tenha dito que esta visão apocalíptica remete os seus livros para a secção dos romances distópicos, junto a 1984 de George Orwell, mergulhando as verdades humanas num banho de irrealidade para melhor as revelar. Isto é, em certa parte, verdade – e, à sua maneira, a Karina supera-se nisso, através da ciência da narrativa e das situações romanescas que mantêm o leitor em suspenso a cada página.

Não é, no entanto, totalmente verdade. Porque não vejo na sua abordagem a vontade de antecipar o “mundo do depois”, aquele que nos está prometido quando a humanidade tiver terminado a história da humanidade. Tenho a impressão de que a ficção e a escrita são para si uma forma particular de olhar para o mundo; uma outra forma, que se justifica precisamente por ser outra. Um eco do que um dos nossos mestres, o intransigente Thomas Bernhard, autor de A cave e Derrubar árvores, escrevia sobre a cidade de Salzburgo: “Não se pode escrever nada a partir do chantilly.” Uma frase que o próprio explicava assim: “Uma cidade que só pode ser vista como as pessoas e o resto do mundo a veem, como uma rapariga que dança ou uma cidade europeia, corta pela raiz toda a criatividade, impede tudo.” E recomendava aos jovens escritores: “Aquilo de que vocês precisam é simplesmente a própria vida, a beleza e a decadência do mundo. Não precisam de prémios, bolsas de estudo ou segurança social. Aquilo de que vocês precisam é o desenraizamento da vossa alma e da vossa carne, a desolação e o abandono quotidianos…” Não digo que a Karina se identifique com esta visão, se não sacrificial, pelo menos ascética, do escritor. Mas a ideia de perceber a realidade das coisas de outra forma, partindo do trauma ao invés da contemplação, é, de facto, o que põe em prática nos seus romances, que talvez sejam, afinal, romances de observação mais do que romances de antecipação.

Porque é mesmo do pesadelo, do centro do conflito, das estradas por onde passa a rota migratória até ao cemitério que, no caso de O terceiro país, emerge a autenticidade e a riqueza emocional da sua escrita. Elas estão latentes, repito, na voz luminosa das suas heroínas, sentinelas de uma condição humana mil vezes desprezada, mortalmente feridas na sua capacidade de amar, de dar vida, de se desenvolver, de contemplar.

Na verdade, o amor e a sexualidade desempenham um papel secundário nos seus romances, o que não é muito comum na literatura. Tanto Cai a Noite em Caracas como O terceiro país são um pouco como Thanatos sem Eros. Mas que espaço restaria para o prazer e a sedução, ou mesmo para o sentimento, nestas terras devastadas onde a nossa humanidade não se distingue de uma paisagem de cinzas e ruínas, e onde o cemitério se torna o santuário não apenas dos mortos mas também dos vivos?

Das mulheres vivas, melhor dizendo. Este mundo corrompido e delapidado, sem regra ou razão, nada mais é do que o legado de uma masculinidade desmesurada levada ao extremo – e cujas primeiras vítimas são as mulheres, as crianças e, por assim dizer, a inocência do mundo. Os seus livros pertencem às suas heroínas, que carregam os filhos não no ventre mas numa caixa de sapatos, e que se unem numa irmandade de resgate e de reconstituição. A Karina confiou-lhes as chaves, mesmo que algumas delas a tenham traído ou se tenham tornado cúmplices. As chaves da dignidade e da liberdade, conquistadas no território minado dos homens. E não é por acaso que seja ao assumir a identidade de uma mulher morta que outra mulher, Adelaida, salve a sua pele e abra portas a uma nova vida em Espanha. Neste universo de lágrimas e sangue, onde a beleza do mundo é pouco mais do que uma memória e as memórias são quase inexistentes, a solidariedade das mulheres transcende as fronteiras convencionadas entre vida e morte. A contaminação continua a ser possível, mas apenas entre mulheres.

E se a mulher fosse realmente o futuro do homem? Esta interrogação está no centro dos seus romances, assim como está no cerne da nossa época. A Karina eleva-a para além das reivindicações feministas, oferecendo-nos uma grande figura literária.

Deixe-me por fim dizer-lhe, estimada Karina, o quanto me sinto orgulhoso, enquanto editor, por ver o seu trabalho aclamado com um prémio tão importante. Agradeço ao júri por ter dado atenção ao romance O terceiro país, que, com a sua rara qualidade, enriquece a bela história que une a literatura francesa à hispânica, sob o olhar fraterno e benevolente de Roger Caillois, que não podemos imaginar se não feliz com este resultado. Agradeço ainda a Gustavo Guerrero, por me ter proposto editar estes dois livros, bem como por ter confiado a tradução dos mesmos a Stéphanie Decante. Cabe-nos defender esta literatura de classe superior, muito contemporânea, que não esconde as violências deste mundo e que sabe consagrar-lhe grandes verdades; esta mesma literatura que se inscreve na esteira de obras tão notáveis como a de Juan Rulfo e o seu Pedro Páramo.

 

André Gallimard»

 

Parabéns, Karina. Seguimos com a força dessa Literatura.

 

 

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