Sobre «A justa desproporção», de Daniel Jonas

Texto de Joana Matos Frias

 

Uma costela aristotélica leva-me a apreciar sempre o princípio segundo o qual po­de­mos começar, naturalmente, pelas coisas primeiras; a outra costela, machadiana pelo lado casmurro, agudiza a tendência para cair na tentação de pensar que em matéria de livros as coisas primeiras consistem em tentar explicar, por uma certa ordem, as razões «do título» e «do livro».

Ora, o problema aristotélico aplicado à ordenação gráfica dos elementos neste livro em particular teria de nos conduzir pelos mistérios insondáveis de um autor que se passeia aparentemente pela primeira vez nos bosques da quase-ficção mantendo o seu or­gulhoso duplo nome bíblico, que aliás tem fiel correspondência na importância que o texto bíblico tem tido na obra em verso. Não irei fazer isso – isto é, explorar o mistério onomástico: mas, curio­sa­mente, se é literal que este é tam­bém um Livro de Daniel, não deixa de ser sugestivo que a justa despro­porção anunciada no seu título possa ser uma boa perí­frase para identificar ma­míferos como baleias, o que assegura de imediato boa e legí­tima com­panhia também a Jonas. A intuição não é de todo despropositada, porque o leitor atento cedo descobrirá neste livro de Daniel a preocupação de Jonas com as baleias de Roberto Carlos, num texto dedicado à «Insustentável leveza da susten­tabilidade» que versa sobre a pro­porção das grandes causas e – como se percebe – das grandes caudas. A baleia – com derivações para o leviatã – sempre teve lugar de destaque no museu natural da poesia de Daniel Jonas, pelo menos desde Moça formosa, lençóis de veludo (2002), e portanto a sua aparição aqui não nos causa qualquer tipo de des­concerto. O desconcerto resulta talvez do rigor e do itálico com que um verso de Roberto Carlos é citado lá onde esperaríamos a aparição grandiosa de um Milton, um Blake ou um Melville, já para não falar do Autor do Uni­ver­so. O leitor que se recorda do verso de abertura de (2014), «Do ventre da baleia ergui meu grito», imagina-se agora muito pro­sai­camente num concerto do Rei do calhambeque. Parecendo que não, é ainda «do título» que se trata.

O primeiro efeito de uma expressão como a justa desproporção consiste em sus­citar no leitor a fantasia do seu oposto. É um exercício mais ou menos ingra­to que o próprio autor legitima, se o acompanharmos num texto como «O trei­nador e o autarca», que abre assim: «Certos contrários são compre­ensíveis. O contrário de ‘nem’ é ‘até’. O contrário de ‘exibição’ é ‘ini­bição’. Já desilusão não é o contrário de ilusão, pois ilusão sempre foi o seu oposto, que é como quem diz o seu igual.» Partindo do princípio ingénuo de que a justa desproporção poderia ser o contrário compreensível de alguma coisa – além de obviamente o adjectivo justa e o substantivo des­pro­porção pare­ce­rem eles próprios estar contrariados nesta relação, mas já lá iremos –, assu­mamos que essa coisa poderá ser a injusta proporção, que por sua vez poderá sugerir uma espécie de tradução para a mais conhecida morada da propor­ção, a divina ou áurea. O leitor do poeta Daniel Jonas (ou do Daniel Jonas tradutor de Chaucer, Milton, Shakespeare e Wordsworth) sente-se bastante confortável com a ideia da divina proporção amadora­mente apli­cada ao conhecido virtuo­sismo dele, amante de métrica e retórica precisas («há uma certa lassidão, um certo facilitismo em muitas coisas que não têm regra e régua», lamuriou-se em tempos). E neste sentido não tere­mos qual­quer dificuldade em aceitar que o escritor, ao cair na tentação da pro­sa, se tenha sentido a pecar por desproporção – mesmo que o Índice deste livro, quase milime­tri­camente distribuído de 22 em 22 entradas, traga consi­go a pro­messa ou a ameaça da proporção perdida. O que nos perturba, em mate­mática como em arte, é o problema da justiça aplicado à proporção (ou à falta dela). Acontece porém que, a observar-se o que se lê no texto «Descan­sar em paz e colaborar com a justiça», «estar disposto a cola­borar com a jus­tiça é mais ou menos como ter de comer a sopa da infância. Não vem com opção». Perante a falta de opção e de sopa, fica o leitor com a saia justa da pro­porção (com o devido abuso do jeu de mots que Daniel Jonas faz entre l’après-midi do título de um filme de Rohmer e midi enquanto tipo de saia). Eis-nos assim chegados, machadianamente, ao ponto que poderia intitular-se «Do livro».

Não será demasiado arriscado assumir que o título A justa desproporção nos diz pelo menos três coisas sobre este livro:

  1. a primeira delas foi já sugerida pela remissão por anto­nímia para a divina proporção em verso regular, e denuncia que haverá uma justiça quiçá subs­tancial na desigualdade entre grandezas discursivas ou textuais que a prosa propicia, como podemos apreciar ao longo da irregu­la­ridade quanti­­tativa de frases, parágrafos e textos que caracteriza este livro, na qual Jonas o poeta poderá ter resolvido problemas existenciais antigos e irre­solúveis entre formas fixas e formas livres;
  2. a segunda foi também já sugerida pela referência ao modo como aqui as ba­leias de Roberto Car­los ocupam mais espaço marítimo do que as de Milton ou Melville: no reordenamento deste território artístico, um dos mo­vi­­­mentos mais interessantes de leitura consiste em acompanhar o modo como a porventura injusta proporção do cânone erudito constituído e consolidado sofre um processo generalizado de anonimato por perí­frase, na exacta medida em que se reajusta a desproporção de um possível câno­ne pop e popular – é assim que Samuel Johnson é apenas «alguém» que disse uma coisa sobre Londres, Ingmar Bergman «um senhor sueco» que também escreveu argumentos para filmes de outros, Borges «um crí­tico», Rui Reininho «o poeta» – e os exemplos seriam inúmeros. Se fosse­mos a números, aliás, o maior número de citações é decerto de canções, e nem todas elas tão dignificadoras do citador como as de Bob Dylan. Certo é que o adolescente dos anos 80 que assistiu ao Justiceiro se sente final­mente justiçado por poder ler um comentário decente ao one hit wonder de Gazebo sobre gostar de Chopin;
  3. a terceira coisa que o título nos diz sobre o livro está errada, porque na verdade é o livro que nos diz sobre o título. É no meio de «A melhor cozinha» – um dos textos mais politicamente incorrectos do conjunto –, e o leitor é informado de que afinal «a justa desproporção» não é mais do que o segredo de Keith Floyd, estrela televisiva de programas culinários que «dançava na arte gastronómica como um génio das pro­por­ções no laboratório trapalhão de cientista louco» (e ainda ensinava a curar ressacas). Eis a musa, Keith Floyd. E eis com ele um dos muitos tópicos apa­­­ren­temente corriqueiros do livro, preferências do palato alheias aos padrões do gosto. Antes de Floyd entrar em cena, temos «Observações pran­diais»; pouco depois, considerações sobre «Gostar de Bacon», e varia­ções entre chispe e chiste. Que Bacon com a sua portentosa maiúscula seja lido ao mesmo tempo como nome de pintor (é de museus que se fala) e como saboroso pedaço de porco (também é de mesas que se fala) diz-nos ainda duas coisas importantes sobre o livro: nele o juízo crítico e o juízo de gosto gozam de uma muito divertida convivência; parte considerável dessa diversão é asse­gurada por um permanente e sempre inesperado jogo de res­sur­reição das células semi-mortas da língua.

 

Se o leitor da poesia e do teatro de Daniel Jonas teme encontrar aqui o seu lado B, pode ter a certeza de que vai mesmo encontrá-lo, ainda que talvez em três trajes im­pre­­vistos: lá onde o poeta reaviva a língua suscitando estra­nheza pela revelação de um vocabulário de efeito arcaizante, como Oblívio e afins, para uso dos raros apenas, o prosador revitaliza a língua estranhando e desmontando a estagnação de provérbios e frases feitas de uso quotidiano, como «devagar se vai ao longe», «des­cansar em paz», «pensar fora da caixa», «beijinhos grandes», ou o estado civil da culpa que morreu solteira; lá onde o poeta tem sido caracterizado como anacrónico e de estilo tardio pre­coce co­mo se de uma doença crónica se tratasse, o prosador comenta todas as nar­rativas hiper-modernas da actualidade e orgulha-se até de ter conseguido mencio­nar redes sociais antes de chegar ao fim do livro; lá onde o poeta tende a pri­vilegiar uma certa gravidade do discurso bem adequado a sonetos isa­be­­li­nos monos­­tró­ficos, o prosador é tão bem-humorado que o leitor não conse­­gue deixar de rir, a não ser nos raros momentos em que, carente de um tragic relief, volta a encontrar uma variação do inesquecido do not go gentle into that good night de Dylan Thomas, que encerra o livro e com ele liga a luz de presença. Eis porque «quase» é aqui, em rigor, um advérbio maduro, com golpe de asa.

 

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