Sobre «Agora e na hora da nossa morte», de Susana Moreira Marques

Texto de Marta Pais Oliveira

 

«Mas não é a ideia de desconhecido que assusta: é a ideia de que não haja desconhecido; apenas o fim.»
A frase é de Agora e na hora da nossa morte, e sublinhamos.

«Rodeou-se de santos para que o consolem da doença como antigamente o consolavam da pobreza.»
Sublinhamos.

«No fim da estrada, uma aldeia de onde desapareceram as crianças. E no fim de outra estrada, mais uma aldeia de onde desapareceram as crianças.»
Sublinhamos.

«A águia voa em círculos, alta sobre as escarpas do rio. Nós, pequenos, junto da água, pés na terra, somos animais governados pelo medo.»
Sublinhamos.

«De manhã, imortal. De noite, o medo de não voltar a acordar.»
Sublinhamos.

«Quando as pernas deixarem de andar e os olhos deixarem de ver e os ouvidos deixarem de ouvir, caminharemos pelas memórias e estas serão nítidas e vozes esquecidas contarão tudo de novo.»
Sublinhamos.

Mas para estas vozes esquecidas contarem tudo de novo, é preciso alguém que as escute. Este é um livro com a violência de várias mortes – a do corpo, a de uma paisagem, a de um modo de viver que se desintegra – e contra a maior violência: o esquecimento. Um livro que defende a beleza e a vida, com uma textura meditativa sobre um país esquecido. Que nos devolve a nossa escala de sofrimento e luto, mas também de comunhão, ternura, afeto. Sabedoria e quase redenção.

A partir de um projeto de cuidados paliativos domiciliários, promovido pela Fundação Calouste Gulbenkian, a autora viaja no Planalto Mirandês, Trás-os-Montes, para escutar. Percorre aldeias muito longe umas das outras, lugares deixados para trás por uma certa ideia de progresso. E escuta – e aqui reside a grande força de um livro íntimo –, escuta com honestidade, uma profunda sensibilidade que nos comove, elegância, humanidade e algo muito raro de se conciliar: força e delicadeza. A escrita de Susana Moreira Marques é tão forte quanto delicada, fazendo de fragmentos clarões.

Agora e na hora da nossa morte é um livro feroz na subtileza, um livro que nos sussurra ao ouvido que nascemos para viver e morrer com liberdade e dignidade, como uma oração. Ou como uma canção encantatória, como a mãe que embala o filho, como avós que continuam a contar a história, porque uma história só existe enquanto é contada. Dividido em dois capítulos – «Notas de viagem sobre a morte» e «Retratos» – e contando ainda com um brevíssimo e poético final, o livro é singular, imenso, entre o jornalismo literário, o aforismo, a meditação filosófica. Tem nomes e rostos: Paula, João e Maria, Elisa e Sara.

Penso neste livro como um mergulho num laboratório de fotografia. Entramos na câmara escura e somos envolvidos por outra textura: sensorialmente, captamos diferenças nos corpos. Tudo é regulado para que a luz não danifique o material fotossensível, a água, o processo lento e misterioso da revelação, a imagem a formar-se, trabalho de mãos e de atenção. Susana Moreira Marques faz um trabalho de mãos e de atenção, a escrita como a que transmuta. A linguagem emerge do invisível, em contacto com o tempo. O tempo está, aliás, muito presente nos seus livros. Pede-nos olhos atentos às sombras, aos silêncios, às penumbras, pede-nos o espanto perante grãos e excessos de luz que a fotografia mostra.

Susana Moreira Marques é mestre do ritmo e desse tempo: não há um minuto a mais que deixe a imagem queimar, não há um minuto a menos que mostre uma imagem pálida. Usa os líquidos da câmara escura com precisão: o que revela, o que interrompe, o que fixa. E escolhe como objeto da sua sensibilidade a nossa história coletiva, ancestral, quase um inconsciente presente nos nossos corpos. Como quem pensa o que está latente, o que é fugidio, trabalhando múltiplas camadas, como negativos sobrepostos. Escreve contra o que é superficial, rápido, torpe, amplia os ângulos sobre o enigma, transforma a raiva e a revolta em revolução graciosa.

Este livro é um manifesto que nos diz, nos seus muitos silêncios, que nascemos para não esquecer. Escrever, ler contra o esquecimento. À coragem de ouvir e estabelecer vínculos com doentes terminais e as suas famílias, há aqui a mestria de formular a pergunta. Porque importa muito como se pergunta. A forma como Susana Moreira Marques pergunta é rara e urgente e muito bela. Estamos nestas histórias, os outros somos nós. Encontro neste texto uma luminosidade que poucos escritores alcançam, a luz e leveza de quem trabalha as palavras para rondarem o não-verbal e darem eternidade ao finito. A força de amar. Terminamos a leitura e queremos amar melhor. Não me lembro de nenhuma vontade mais bonita e forte que possamos ter no fim de um livro.

 

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