As Aventuras Completas de Dog Mendonça e Pizzaboy compila os três volumes de uma história já conhecida dos leitores — e acrescenta-lhe detalhes inéditos. A Penguin Magazine falou com Filipe Melo e Juan Cavia sobre a nova edição e as primeiras memórias do trabalho em dupla.
Passaram-se mais de treze anos desde que Filipe Melo e Juan Cavia deixaram de ser dois artistas em separado e passaram a surgir, aos olhos de cada vez mais leitores, como a dupla imbatível da BD em Portugal, capaz de feitos estratosféricos à dimensão nacional. Concordam com esta descrição da vossa nova identidade? Isto é, até que ponto serem artistas em dupla é mais interessante, enervante ou desafiador do que cada um de vocês se dedicar individualmente a outras artes (e já lá vamos…)?
Filipe Melo: Agradeço os elogios e tenho muito orgulho em ser considerado parte de uma dupla com o Juan Cavia, e de ter um papel na comunidade da BD portuguesa. Acho que a nossa combinação particular resulta de uma mistura de fatores – compromisso com o trabalho, uma vontade de melhorar e confiança mútua. É muito fácil trabalhar com o Juan, porque sei que vai sempre acrescentar brio e talento a tudo o que faz. Além disso, conhecemo-nos bem um ao outro, o que faz com que funcionemos como uma banda ou (um casal!) que já está junto há muito tempo, mas que ainda não perdeu o encantamento e a cumplicidade. Trabalhar em dupla é sempre mais interessante para mim se essa química existir. É, no fundo, como na música – às vezes essa química acontece logo quando tocamos com alguém.
Juan Cavia: Estou extremamente grato ao povo português por ser sempre tão caloroso na sua receção. Em relação à dupla, acredito muito nas duplas em geral, tento sempre trabalhar com alguém, ter um contraponto ajuda-nos a sair do centro e a poder ver com perspetiva. O difícil é manter essas duplas durante muito tempo. No caso do Filipe, acho que ambos confiamos muito no discernimento um do outro.
Se vos enfiássemos numa cápsula do tempo, para uma viagem ao passado, qual seria a memória um do outro que resgatariam e partilhariam connosco?
FM: Eu resgataria as nossas inúmeras viagens pelo país a promover os nossos primeiros livros, nomeadamente este que estamos agora a reeditar. É muito difícil destacar ou verbalizar essas memórias, especialmente porque eram bastante rock and roll. Uma vez bati com o carro do meu pai num portão – quando ele próprio nos estava a ajudar a estacionar, de tão cansado que estava. Numa viagem destas, para trabalhar no livro “Os Vampiros”, ficámos mais de 24 horas sem dormir a passear pelo campo e a conversar sobre a vida e sobre o trabalho. Foram tempos de enorme criatividade e determinação, mas com a insanidade de quem realmente está mergulhado num projeto, em que tudo o resto se torna secundário – já não sou assim.
JC: Nesta altura já são muitas as aventuras partilhadas, mas uma memória que ficou gravada na minha cabeça para sempre foi a primeira apresentação do Dog com toda a equipa, no Fantasporto, para um grupo de 15/20 pessoas (a maioria eram amigos ou familiares). Não aconteceu nada de especial, mas agora, quase 14 anos depois, tudo se vê com outra perspetiva.
Publicar num só volume, numa edição cuidada e depurada, as aventuras de Dog Mendonça e Pizzaboy era um sonho antigo? Ou acham que pode vir a ser um daqueles pesadelos psicanalíticos em que nos confrontamos com fantasmas do passado?
FM: Para mim, um pouco de ambos – temos orgulho no resultado, mas era tão diferente e tão inexperiente, que é inevitável sentir alguma vergonha quando me vejo confrontado com os erros técnicos e artísticos. No entanto, é um reflexo real daquilo que éramos, o que tem também a sua beleza – ver essa passagem do tempo, essa inocência. Acho que ver o trabalho todo reunido numa antologia me faz pensar que, apesar de ter monstros e explosões, é esse o tema central desta história – a passagem do tempo. Era um sonho antigo no sentido em que queria muito terminar isto – sabem aqueles pesadelos em que sonhamos que não acabámos o liceu? É parecido. Tínhamos de colocar um ponto final e reunir estas histórias para poder seguir em frente, tanto que estavam esgotadas há muitos anos.
JC: A ideia de fazer um volume único surgiu como alternativa a não voltar a editar o volume 1 – o mais antigo e aquele de que gostamos menos, obviamente –, acrescentando uma história inédita que aumentasse o nosso entusiasmo e o dos leitores. O projeto original corresponde muito a um momento das nossas vidas, uma juventude um pouco vazia a nível artístico e narrativo, por isso Madame Chen também está incluída no livro como um contraponto, uma história mais profunda, mais adulta e com recursos mais equilibrados.
Sabendo que atribuíram um adjetivo a cada um dos volumes da saga – aventuras incríveis, extraordinárias e fantásticas (mais os contos inéditos) –, que adjectivo poderia agora servir a esta edição definitiva?
FM: Completas. Não soa tão bem?
Cada uma das vossas aventuras editoriais traz inevitavelmente uma surpresa. Desta vez, decidiram não se ficar pela edição omnibus do que já existia, mas acrescentar uma nova personagem, uma nova narrativa e um novo deleite visual. Quem é a Madame Chen e qual foi a ideia por detrás desta invenção?
FM: Um dos fatores essenciais do nosso trabalho na BD tem sido a relação próxima que fomos criando com os nossos leitores. Temos uma gratidão imensa pela comunidade que apoia o nosso trabalho desde o início – desde que estes três volumes saíram. São mesmo um público fiel, que nos dá vontade de evoluir, e de surpreender. Há uns anos, prometemos que escreveríamos a origem desta personagem, a Madame Chen. Queríamos cumprir essa promessa. Era também uma forma de contar algo novo, agora que estamos mais velhos, que fizesse parte do universo que criámos há uns anos e que honrasse uma personagem que inicialmente era quase uma caricatura. Foi também uma forma de nos redimirmos com essa questão. Gostei muito de trabalhar nesta história e espero que gostem de a ler.
JC: Os livros de Dog Mendonça e Pizzaboy não nos representam muito bem neste momento. Fazer um spin off da Madame Chen foi a melhor forma que encontrámos para gerar esse contraste, pegámos numa personagem secundária que tinha alguma mística e algumas piadas politicamente incorretas e vimos o outro lado da moeda, o desafio era fazer o caminho inverso.
Filipe, além de escritor, és um pianista consagrado (entre muitas outras coisas). Juan, além de ilustrador, és diretor de arte em cinema e publicidade. Quanto das vossas outras vidas entra no processo criativo dos livros? Por outro lado, qual dos vossos quatro livros foi mais diretamente influenciado por outras obras literárias ou escritores, e que influências são essas?
FM: Tenho observado que o processo criativo nas diversas áreas é muito semelhante. O ofício é transformar ideias em coisas concretas, é algo que cada dia me parece mais complexo, nunca fica mais fácil. Os nossos livros são influenciados por muitos dos nossos interesses comuns, que felizmente são muitos. O cinema, a música e, claro está – a literatura. Diria que, se nos primeiros livros a influência era mais cinematográfica, e no livro “Os Vampiros” a documentação real e entrevistas, em Balada para Sophie houve uma influência muito forte da literatura sul-americana – que frequentemente conta histórias longas e onde o realismo mágico está tão presente.
A maior surpresa no vosso percurso enquanto dupla de BD foi receberem a notícia sobre a futura adaptação televisiva de Balada para Sophie? Se não, querem partilhar connosco qual foi?
FM: Houve tantas, ao longo dos anos, e algumas tão estranhas. A primeira diria que foi a viralização do trailer do volume 3 do Dog Mendonça, com as aranhas gigantes na ponte, foram dois milhões de visualizações nos primeiros dois dias – uma loucura, porque éramos mesmo uma coisa de nicho e foi divertido ver como de repente algo chegou a tanta gente de uma forma tão pouco planeada. Agora que estamos na liga sénior, diria que foi a nomeação aos prémios Eisner. Não estávamos mesmo a contar com isso. A nossa viagem à Comic Con de San Diego foi épica, com muitos momentos bonitos.
JC: Sinceramente, não sabemos em que fase se encontra esse processo [Balada para Sophie], mas, seja ele qual for, estaremos sempre gratos pelo interesse que tem sido demonstrado.
Há planos, num futuro próximo, para um novo livro a quatro mãos?
FM: Espero que aconteça. Há algumas ideias a flutuar, mas ainda não faço ideia o que será.