A adolescência é talvez a melhor idade para conhecer os clássicos. Lembro-me da surpresa com que, aos catorze ou quinze anos, descobri, na eclética biblioteca do meu pai, os diálogos humorísticos de Platão, as intrépidas histórias de Heródoto, os poemas ardentes de Catulo, os suaves ensaios de Séneca. Sem ninguém que me obrigasse a estudá-los e sem ninguém que me avisasse que se tratava de clássicos, folheei os pequenos volumes da coleção Austral, de Buenos Aires, perguntando-me, como Sócrates, como se distingue o sono da vigília; perguntando-me, como Heródoto, se os Essénios guerreavam num mar de gelo; perguntando-me, como Catulo, sobre a beleza de Lésbia e Juvêncio; e desejando, como Séneca, um jardim isolado para me sentar e ler em paz. Os clássicos foram para mim os tradutores do mundo, dando-me palavras para o nomear.
Com a idade, muitos dos textos essenciais tornam-se, na memória, quase banais, talvez porque a nossa experiência faz com que já não pareçam tão surpreendentes e esclarecedores como quando os lemos pela primeira vez. Com o passar do tempo, as reflexões dos sábios antigos tornam-se nossas, e repetimo-las já não como revelações cintilantes, mas como uma confirmação banal de verdades, infelizmente, demasiado óbvias: a vida é curta, a felicidade é fugaz, a carne é triste, os sonhos da juventude são frustrados, a miséria do mundo é constante. A velhice transforma-nos, a todos, em pequenos filósofos de uma banalidade avassaladora.
Não é o caso de Juan Gabriel Vásquez, que, com a idade (ainda é imensamente jovem), se torna cada vez mais filosófico. Conhecemo-lo como um digno discípulo de Conrad e Vargas Llosa. As conferências que lhe foram encomendadas pela Weidenfeld mostram-no também como um digno discípulo de Umberto Eco e George Steiner, anteriores conferencistas desta prestigiada série.
Proust, citado por Vásquez, sugere que todo o escritor é, de facto, um tradutor. Dante, mais modestamente, chama-lhe escriba. Não importa. Um escritor é aquele que ouve o ditado daquilo a que Vásquez chama «o mundo» e traduz esse mundo em narrativas que respondem a esse ditado. Para o fazer, diz Vásquez, temos de encontrar as boas perguntas e, de alguma forma, encorajar a desconfiança em relação à ficção que atravessa, por exemplo, a Odisseia, onde, sempre que as desventuras de Ulisses são contadas (as ocasiões são muitas), aqueles que ouvem a narrativa traduzem-na de acordo com as suas próprias necessidades. O Lazarilho de Tormes e Robinson Crusoé (dois exemplos propostos por Vásquez como primogénitos da arte do romance) propõem a mentira como verdade, e essa mentira (ou ficção) acaba por ser para os leitores o verdadeiro retrato da sua experiência. As palavras que narram o mundo acabam por ser o mundo. Assim foi com a Colômbia descrita por Vásquez como Costaguana, ecoando a ficção de Conrad, e nos romances que se seguiram (especialmente O ruído das coisas ao cair e A forma das ruínas), que usam a realidade para resgatá-la das mentiras políticas, transformando-a em ficção verdadeira.
Não apenas espelho: Vásquez propõe a ficção como uma lição de empatia. Lemos ficção, entre outras coisas, para nos solidarizarmos com o nosso destino através do destino dos outros, mas também para nos consolarmos com aquilo a que os alemães chamam Schadenfreude, essa espécie de alegria sombria por descobrirmos que os outros, os nossos antepassados, também não foram felizes, e que em tempos remotos a vida não era nem mais fácil, nem mais justa. Não sei se nesta época de loucura colectiva, em que a liberdade está cada vez mais ameaçada, isto pode servir de consolo, mas Vásquez propõe, com uma originalidade corajosa, que toda a perda de liberdade é, em parte, uma perda narrativa. Carlo Collodi, o autor de Pinóquio, argumentou, no mesmo sentido, que toda a crise de uma sociedade é uma crise da imaginação.
Vásquez conhece bem o conselho de Séneca sobre como ajudar o espírito a sobreviver, que é uma espécie de manual de instruções para um escritor de ficção. Dou alguns exemplos:
– Séneca conta, em Sobre a Tranquilidade da Alma, que Cano, condenado a morrer, disse ao seu conselheiro que tinha resolvido «observar, neste instante fugidíssimo, se a alma percebe se parte» e prometeu-lhe que, se descobrisse alguma coisa, visitaria um após outro dos seus amigos e revelar-lhes-ia qual a condição dos espíritos no Além. (Dezoito séculos depois, num continente que não existia para Séneca, Edgar Alan Poe transformaria o nobre propósito de Cano na aterradora história de «Os Factos do Caso do Sr. Valdemar»).
– Calígula, um dos mais dementes e sanguinários dos Césares, foi assassinado em janeiro de 41 d.C., «muito desgostoso», escreve Séneca com arte de romancista, «se algum sentimento subsiste nos infernos, por ver que lhe sobreviveu o povo romano» (Videla e Pinochet partilharam certamente esse desgosto).
– Catão, explica Séneca a propósito da cólera, foi um dia esmurrado na cara; quando os seus amigos se mostraram surpreendidos por ele não se ter irritado nem ofendido, Catão respondeu: «Não me lembro de ter sido atingido» (uma resposta ainda mais subtil do que a que um contemporâneo de Séneca proporia numa montanha da Galileia). Vásquez dá a sua versão desta estratégia estoica em Olhar para trás.
Como traduzir o mundo, o que pode um escritor fazer para falar do sofrimento dos outros, em Tróia ou em Roma, na Colômbia ou em Gaza? A verdade é que quase todos os seres humanos, mesmo aqueles que cometem as injustiças mais atrozes, sabem intuitivamente o que é justo e o que não é. O que obviamente não sabemos é como agir com justiça em todos os momentos, como um todo, como uma sociedade, e cada um por sua vez, como cidadão. Há algo em cada um de nós que nos inclina para o ganho material e pessoal, sem consideração pelos outros; algo oposto atrai-nos para os benefícios mais subtis do que é oferecido, do que é partilhado, do que pode ser útil não a nós, mas aos outros. Algo nos leva a saber que, embora a ambição de riqueza, poder e fama possa animar-nos poderosamente, a experiência, a nossa e a do mundo, acabará por nos mostrar que, em si mesma, essa ambição é inútil. É esta a fé na ficção que Vásquez nos propõe.
Sócrates diz-nos que quando a alma de Ulisses, tal como uma personagem de um dos romances de Vásquez, teve de escolher uma nova vida após a sua morte, «abandonando a sua ambição com a memória dos seus trabalhos anteriores», o lendário aventureiro procurou a vida de «um homem comum e desocupado» e «escolheu-a com alegria». Não é impossível que este tenha sido, para Odisseu, o seu primeiro ato verdadeiramente justo.
ALBERTO MANGUEL
2024