O famoso conselho de Hemingway, «Escreve uma coisa verdadeira», assenta que nem uma luva ao novo livro de Ana Markl, Do Outro Lado do Tempo, inspirado nos seus diários de adolescência. É tão autêntico e verdadeiro que, ao lê-lo, sentimos muito coisa. Aquele misto de dor e felicidade, aquele aperto no estômago, na garganta ou lá onde é… É impossível não nos identificarmos com as memórias da Ana dos anos 90 e com as considerações da Ana de hoje.
Tudo começa com o medo dos beijos com sabor a sardinha e vamos por aí fora, embalados nesta viagem que foi, é, a adolescência de tantos de nós. Do normal ao estranho, a distância é afinal curta e, bem vistas as coisas, alguma vez fomos normais?
A intensidade com que vivemos a adolescência não seria suportável na idade adulta, mas entre a «adulta pequena» e a «criança grande» não há muros intransponíveis, mas sim uma proximidade desarmante. A Ana do passado e a Ana do futuro são boas amigas. E nossas também.
Pedimos à Ana Markl que comentasse dez frases verdadeiras (são muitas mais) que sublinhámos enquanto líamos.
«Toda a gente mente para ficar mais parecida com toda a gente.»
Há muita coisa que afasta as gerações, mas esta une-nos a todos: quando somos novos, queremos pertencer. É uma espécie de estágio para o que imaginamos ser a vida adulta. Queremos ser aceites e ser normais, seja lá o que isso for. Mas, nesse processo, esquecemos a nossa verdadeira essência: envergonhamo-nos da nossa roupa, dos nossos gostos, do nosso corpo. Mas temos na adolescência a oportunidade para sonharmos ser diferentes e, com muito amor próprio, a coragem para vivermos as nossas diferenças e sermos respeitados por isso. E isso é muito libertador.
«A honestidade é sempre confundida com a coragem.»
Desde cedo na vida, entendemos que, nesse processo de querermos ser aceites, a mentira é validada. Dizer a verdade não devia ser um acto de coragem, devia ser simplesmente a regra. Mas, se alimentarmos a ameaça do julgamento e até do bullying, dizer a verdade é tão violento que se torna algo heroico. Houve um momento definidor da minha vida aos 14 anos quando, simplesmente, decidi dizer a verdade perante toda a minha turma. E esse gesto valeu-me o respeito de toda a gente.
«Não temos de parecer para pertencer.»
Quando percebi que nunca seria respeitada nas minhas tentativas de ser igual à maioria (por não ser suficientemente bonita, por ser demasiado sossegada, por ler muito ou gostar de um certo tipo de música), procurei a minha tribo. Fi-lo inconscientemente, vestindo-me de preto, pintando o cabelo às cores ou sendo assertiva nas minhas paixões e particularidades. Não o fiz sem medo, mas fiz. E compensou porque, mesmo que alguns não me compreendessem, eu compreendia-me e gostava mais de mim assim.
«A vida melhorou bastante quando os meus gostos começaram a ser um bocadinho mais importantes do que o meu aspeto»
Junto de pessoas com gostos semelhantes, senti-me vista, acolhida e desafiada. Em vez de pessoas que tentavam ser iguais umas às outras e corresponder às expectativas mais aborrecidas da sociedade adulta, encontrei pessoas que se esforçavam por não encaixar, trazendo cada uma novas visões do mundo, nova música, livros, filmes, ideias. Foi muito reconfortante e divertido deixar de querer ser a mais normal para querer ser a mais interessante.
«Há colegas que acham que eu sou triste a fingir. Armada em triste. Armada em diferente.»
A tristeza é muito menosprezada por toda a gente. Creio que hoje em dia se fala mais disso, da aceitação da tristeza como fazendo parte de uma vida feliz. Mas, na prática, as coisas continuam na mesma. “Não fiques triste”, “sorri”, “deves ter a mania” são frases muito ouvidas quando só nos apetece estar no nosso canto. Penso muitas vezes que, se rimos até doer a barriga, também é importante chorarmos até nos doer o peito. Eu era muito melancólica, continuo a ser. Mas, quando era adolescente, sentia que só a música é que acolhia esse sentimento. Gostava de ter tido mais colo do mundo, mas consegui pelo menos dar-me esse colo, sobretudo através da escrita.
«És uma criança grande. Ou então foste sempre uma adulta pequena, não sei bem.»
Quando era criança, sorvia as preocupações dos adultos. Quando me tornei adulta, não desisti de me divertir como se fosse uma criança. Algures no meio, está a adolescência: um tempo em que desejamos a atenção que tínhamos quando éramos pequenos e, ao mesmo tempo, em que desejamos a independência dos mais velhos. É, por isso, um tempo complexo em que já não somos uma coisa e ainda não somos a outra. E somos ambas, ao mesmo tempo.
«Parece que estou parada à beira da vida e nunca mais avanço.»
Esta frase resume bem os últimos anos da adolescência: sentimos que algo está a começar, mas a sociedade ainda não nos leva suficientemente a sério para sermos quem queremos ser. Estamos dependentes do controlo e das expectativas dos nossos pais que, muitas vezes, mesmo querendo o melhor para nós, nos sobrecarregam com planos e sonhos que são deles e não nossos.
«A intensidade é o fermento da memória.
Escolhi, ao longo da vida, não ter medo de a viver e isso conferiu muita intensidade às minhas vivências. Tive uma vida igual a muitas outras, mas vivi-a à minha maneira, tendo consciência de que o ia restar eram as memórias. Ainda gosto de viver assim, a pensar nas histórias que vou ter para contar no futuro.
«Estou sempre a pensar: “Eu não devia estar aqui.” Mas também não sei onde devia estar.»
Esta frase resume bem a adolescência. Uma sensação constante de desconforto. De não sabermos o que queremos nem quer queremos ser. De não estarmos bem em lado nenhum e de querermos estar em todo o lado ao mesmo tempo. Apesar de ser desconfortável, é uma sensação que devemos preservar para sempre como sendo um motor da vida. Que devemos preservar como sendo uma boa razão para não nos conformarmos.
«A descrença no amor é uma defesa dos inseguros.»
Sempre ouvi adultos a queixarem-se das suas relações, dos seus casamentos. A rejeitarem a ideia de que o amor verdadeiro existe e a responsabilizarem o mundo pelos seus fracassos. Mas as relações, mesmo quando terminam, nunca são fracassos. São caminhos que nos ajudam a sermos melhores e a querermos o melhor para nós. Quando desistimos do amor é porque temos demasiado receio da dor e demasiado medo de falhar. Mas, se nos responsabilizarmos e entendermos o amor como uma aprendizagem, o medo de falhar desaparece e expomo-nos ao amor de uma forma muito mais arrebatada, mesmo que seja um sentimento não correspondido. Devemo-nos entregar à dor para percebermos melhor o que é a felicidade. Devemos acreditar sempre que é possível para que se torne possível – não por uma questão de sorte, mas por uma questão de risco e de entrega.