Publicado em mais de 40 países, coeditado pela UNESCO em vários idiomas e territórios, nomeado para vários prémios e aclamado pela crítica, O Que Nos Torna Humanos (ed. Fábula), com texto do linguista brasileiro Victor D.O. Santos e ilustrado pela artista italiana Anna Forlati, celebra a diversidade linguística e assinala a Década Internacional das Línguas Indígenas (2022-2032). O livro propõe um enigma que se vai aprofundando ao longo das páginas, e lança um alerta. Quando uma língua desaparece, perdemos um universo inteiro.
É um linguista, um académico. Como surgiu a vontade de escrever um livro para crianças?
Desde pequeno sou apaixonado por literatura infantil e pelo poder das palavras e da imaginação. Tive sorte de ter sido criado por uma mãe que lia para mim todas as noites e de crescer rodeado por bons livros.
Comecei a escrever livros para crianças em 2019, quando meu filho Dylan tinha apenas 3 anos. Meu primeiro livro foi sobre uma história em que meu filho é o personagem principal e me lembro como se fosse ontem do sorriso dele ao ter o livro em mãos e se ver representado nele. Gostei tanto de produzir este primeiro livro que desde então não parei de escrever e criar livros. Além de amar escrever para crianças, adoro também o processo de criação conjunta com os ilustradores com quem colaboro. Neste tipo de livros, a ilustração tem uma importância enorme para o resultado final e sucesso da obra.
Como foi a escolha e o trabalho com a ilustradora Anna Forlati?
Eu já havia colaborado com a Anna Forlati em um outro livro meu, chamado My Dad, My Rock (Meu Pai, minha rocha), que foi selecionado como Melhor Livro de 2022 nos EUA pela revista Kirkus Reviews, mas ainda não está disponível em Portugal. Eu e a Anna trabalhamos muito bem juntos e comunicamos frequentemente durante todo o processo de criação de nossos livros, discutindo o mérito de várias ideias potenciais. Acho a Anna muito talentosa e com uma linda sensibilidade, portanto a convidei para ilustrar também o meu livro O que nos torna humanos. Quando leu o manuscrito, ela imediatamente quis fazer parte do projeto, pois também ama línguas e gosta da nossa parceria criativa.
Durante a nossa colaboração, Anna e eu trabalhamos ainda mais próximos do que no livro anterior. Parte disso se deve ao fato de O que nos torna humanos funcionar como um enigma, em que o tema do livro só é revelado na última pagina. O texto e as ilustrações andam de mãos dadas o tempo todo, com cuidado para que as dicas textuais ou visuais não revelem a resposta do enigma cedo demais e com as imagens sempre complementando o texto e acrescentando camadas extras de sentido e interpretação. Foi um processo bastante minucioso e com bastante pesquisa e discussão entre nós dois e também com o Daniel Cabral, designer do livro.
Diferentemente de outros livros nossos e do estilo que ela geralmente utiliza, a Anna usou um estilo de ilustração mais minimalista e digital, pois quis que o texto tivesse espaço suficiente para respirar, o que acho ter sido uma boa escolha.
Este livro foi lançado em parceria com a UNESCO em homenagem à Década Internacional das Línguas Indígenas (2022-2032). Que iniciativa é esta e como se ligou à escrita deste livro?
A Década Internacional das Línguas Indígenas (DILI) é um período de dez anos (2022 – 2032) consagrado pelas Nações Unidas em que a ONU, através principalmente da UNESCO, tem como objetivo chamar a atenção de pessoas, governos e instituições ao redor do mundo para a importância de se preservar as línguas indígenas, muitas das quais estão morrendo. Estima-se que mais da metade das cerca de 7164 línguas do mundo (Ethnologue, 2024) irão desaparecer até o ano 2100. A maioria dessas são línguas indígenas, com números bastante baixos de falantes.
Quando ouviu falar do livro, a UNESCO propôs tornar-se coeditora do mesmo em várias das línguas em que está sendo publicado ao redor do mundo, e que o livro fosse oficialmente associado com a DILI. Apesar de o o foco ser a linguagem em si, e a importância e valor de todas as línguas do mundo, incluindo línguas não indígenas, as línguas indígenas têm um papel central na obra. Assim, em todas as edições publicadas em parceria com a UNESCO, tal como esta versão em português europeu, o livro inclui uma nota oficial da UNESCO ao final, falando sobre a DILI e sobre a importância da preservação linguística. O livro tem sido uma ferramenta importante ao redor do mundo para divulgar a DILI de uma maneira concreta para o público geral através da literatura. O que nos torna humanos já foi inclusive traduzido em duas línguas indígenas, o que diretamente contribui não só para a valorização destas línguas, mas também como um material que pode ser utilizado diretamente em sua preservação e aprendizado.
A importância da língua para a nossa identidade individual e identidade como grupo é algo em que as crianças não pensam, quanto mais a sua possível extinção. Em que medida o seu livro pode ajudar nesta consciencialização?
De fato, a língua é uma coisa tão essencial para as pessoas, incluindo crianças, que muitas vezes passa despercebida, assim como o ar que respiramos. Simplesmente está lá quando precisamos dela e, por isso, as crianças geralmente não a consideram algo especial. Gosto de fazer as seguintes perguntas para as crianças quando faço leitura ou apresentações deste livro: «Como você acha que sua vida mudaria se de repente houvesse apenas 50 pessoas que falassem a sua língua materna? E se você fosse o último falante desta língua? Se a sua língua deixasse de existir, o que você acha que poderia se perder e como isto poderia te
afetar?». Quando focamos estas perguntas diretamente no pequeno leitor, eles tendem a se relacionar mais diretamente com o tema.
O que nos torna humanos ajuda as crianças a se conscientizarem sobre a importância das línguas ao apresentar várias faces e aspetos diferentes das línguas, incluindo sua conexão crucial com uma cultura. Língua e cultura são dois lados de uma mesma moeda, em que uma molda a outra e é influenciada pela outra. Elas são inseparáveis. Através de jogos de palavras e ilustrações que engajam os leitores, assim como seu formato de enigma em que o leitor tenta descobrir o tema a cada página, o livro abre espaço para discussões sobre as línguas, identidade, cultura e diversidade. Para muitos pequenos leitores, será a primeira vez que param para pensar nas línguas e em sua importância.
Quando uma língua desaparece, há um mundo que desaparece com ela. Como podemos explicar isto às crianças?
Cada língua é como um par de óculos diferente, com características diferentes, que permite que seus falantes enxerguem e interpretem o mundo de uma determinada maneira. Quanto mais línguas existirem no mundo, mais modos diferentes de ser enxergar e interpretar o mundo existirão. Nenhuma língua é melhor que a outra e cada língua é moldada para ser o melhor tipo de «óculos» para uma determinada cultura. Cada língua inclui em si aprendizados e conceitos que se mostraram úteis para uma cultura por centenas, e por vezes milhares, de anos. E quando uma língua desaparece, muito do que estava codificado nesta língua sobre o nosso mundo se perde também, incluindo histórias que jamais conheceremos….
A maioria das crianças que fala português, por exemplo, não sabem que muitos dos livros infantis que leem e tanto amam foram escritos originalmente em outras línguas e tiveram que ser traduzidos para o português. Se estas línguas desaparecerem, perderemos acesso a muitas histórias originadas nestas línguas que jamais poderão um dia ser traduzidas. A perda de cada língua empobrece o mundo não só para seus falantes, mas para todos nós.
A tão falada inteligência artificial também representa uma ameaça para a diversidade linguística? Como encara o papel da IA neste contexto?
Não creio que, neste momento, a IA apresente uma ameaça para a diversidade linguística em si. Muitas pessoas dizem que o progresso que temos observado na área de tradução automática diminui a motivação das pessoas para aprenderem uma língua estrangeira. No caso de algumas pessoas, isto pode ser verdade, mas não creio que isto tenha impacto significante sobre os falantes nativos de uma língua. Também não vi evidência até agora de que um número significativo de pessoas que gostaria de aprender uma língua esteja deixando esta ambição de lado devido à existência de avanços tecnológicos como a IA. A maioria das pessoas aprende um novo idioma para se comunicar em tempo real e de forma natural com outros seres humanos, interagindo com uma nova cultura e trocando experiências.
Muitas gostam do processo em si de se aprender uma nova língua e do desafio intelectual e pessoal que este exercício cria. Tradução automática entre línguas, por exemplo, não pode suprir isto. A IA pode até ser uma excelente ferramenta para que as pessoas possam aprender línguas de forma mais rápida ou personalizada. Também ser uma ótima ferramenta na revitalização e preservação de várias línguas, principalmente aquelas que atualmente possuem poucos falantes e materiais disponíveis. Pode ajudar na criação de sistemas e programas avançados que utilizam estas línguas, como navegação geográfica e sistemas conversacionais, elevando o status de várias destas línguas e fornecendo mais oportunidades de uso a seus falantes.
As línguas representam riqueza, profundidade, variedade de vocabulário, de sentidos e significados. A nossa capacidade de ler e interpretar textos está a diminuir?
Em geral, acredito que nossa sociedade está se acostumando a consumir informação em doses cada vez menores. Frequentemente, lemos apenas a manchete de uma notícia ou um resumo rápido da mesma. Quando temos que ler a matéria inteira, nos cansamos mais facilmente. Vivemos num mundo cada vez mais rápido, em que somos bombardeados por ideias apenas parcialmente cozidas, digamos. Noto que as crianças de hoje leem menos que as crianças de gerações anteriores e passam mais tempo à frente de telas do que interagindo com outras pessoas ao vivo, usando a linguagem para estabelecer conexões.
Uma pesquisa conduzida em 2019-2020 pelo Pew Research Center mostrou que o número de crianças de 9 e 13 anos que leem por prazer quase diariamente está em seu menor nível desde 1984. Para crianças de 9 anos, a queda foi de 11% em relação a 1984. Assim, acredito sim que nossa capacidade de ler e interpretar textos possa estar diminuindo, o que reforça ainda mais o valor da literatura infantil de qualidade e a importância da leitura, tanto independente quanto compartilhada, nos lares.
Em quantas línguas foi traduzido este livro e quantos países? Que significado tem para si o interesse que despertou em tantos editores internacionais?
Até o momento desta entrevista (julho de 2024), O que nos torna humanos já foi traduzido para 22 línguas. Quanto ao número de países, é mais difícil dizer o número exato, uma vez que várias destas línguas (como o espanhol e o árabe) são faladas em um número grande de países, ao passo que outras, como o japonês, possuem uma área geográfica mais limitada.
Mas posso dizer que são mais de 40 países. O sucesso do livro me deixa bastante feliz, é claro. Fico feliz que meu trabalho esteja sendo reconhecido e apreciado em tantos países, mas acima de tudo fico feliz que a mensagem principal do livro esteja chegando a um número cada vez maior de pessoas ao redor do mundo. Para um livro sobre o valor de todas as línguas, não há nada melhor do que ver o livro disponível no maior número possível de línguas, incluindo línguas com um número relativamente baixo de falantes, como o basco e o otomí (língua indígena falada no México).
Acredito que o que tem atraído editoras de todo o mundo seja a capacidade de apresentar um tópico mais abstrato como a linguagem de uma maneira dinâmica e engajadora, assim como o fato de o livro tratar de um tema tão universal e apresentar uma mensagem importante para os dias de hoje.