A matemática é frequentemente retratada como uma área de certezas, onde as verdades são absolutas e as respostas definitivas. No entanto, existe um canto onde a incerteza reina e o perigo “está sempre à espreita.” Rita Canas Mendes traz-nos um livro sobre identidade, memória e os traumas íntimos e geracionais de uma família portuguesa entre os anos de 1990-2000.
Aqui partilhamos o texto de Joana Neves sobre Teoria das Catástrofes Elementares, lido no evento de lançamento no passado mês de abril, em Lisboa.
“A Teoria das Catástrofes Elementares é um ramo da matemática que estuda mudanças repentinas de comportamentos provocadas por pequenas alterações de circunstâncias («uma borboleta bate as asas, etc»).
A matemática pode ser, para as pessoas de letras (ou pior ainda, de filosofia), uma utopia, uma panaceia de certezas e demonstrabilidade; desde Platão, Bach, Gödel, Deus que não joga aos dados com o universo («não faz ele outra coisa, o ludopata»).
Mas esta Teoria das Catástrofes Elementares desengana-nos logo. Apesar do título, apesar do nome das protagonistas: Vera e Sofia – que outros nomes poderiam melhor indicar uma sede de saber ao certo? Mais do que matemática pura ou teórica, temos composição pictórica: sobreposição de planos («quando eu tinha a idade dela», «quando ela tinha a minha idade», «quando ela tiver a idade que eu tenho», …); e de perspetivas («o meu avô morreu estatelado e o pai da minha mãe morreu de outra coisa qualquer. o marido da minha avó morreu certamente de uma coisa diferente» p. 35). Não é possível saber ao certo porque toda a narrativa é um acerto, uma aproximação, um bordado (um fazer e desfazer, «mais de 20 anos a desfazer os primeiros 15», p. 58). O primeiro capítulo, que narra (ou seja, tanta aproximar, tenta focar) aquele acontecimento com o mais psicanalítico dos nomes — o desastre da mãe — dá o mote para o livro todo: «Mas não, não foi um camião a atropelá-la, foi um camião a tapar-lhe a vista, assim é que a história está certa», p. 13) Deambulamos por mais 33 capítulos para ficar claro que a história nunca está certa, nunca bate certo, nunca se acerta, porque não é matemática, é história.
E como funciona? «Por mais que queiramos esquecer o passado, ele não se esquece de nós», p. 48. Aqui temos outra história da criança perdida (numa linhagem literária que inclui Elena Ferrante, Angela Carter, Margaret Atwood, Maria Judite de Carvalho, etc. tantas), mas perdida dentro de si, metida em abismo (ouroboros, diz a narradora). O que Vera tem para se defender de e investir pelo passado adentro (qual investida em África dos seus antepassados, descoberta pela qual também se perde) é o privilégio narrativo (roubado ao pai? p. 36). É ela que conta, é ela que costura e tece esta coisa nova que é o contar de coisas velhas (p. 198 (“ex/ eis”) Mas desenganemo-nos outra vez: esta costura pode nem ser possível: «as palavras estão sempre a mudar, vão e vêm, como as mãos». p. 51; nunca nada fica arrumado, no mesmo sítio. O que se tece está preso por um fio, o que se faz está a sempre a ponto de se desfazer, e nada se desfaz mais e melhor do que uma narrativa.
Esta é a mesma avó que «fala do tempo de Africa como se o continente já não existisse», p. 36; mas não existe mesmo; o passado é um país não só estrangeiro, mas desaparecido, afundado — já não existe, e por inexistir, existe com mais força ainda (ex/eis). E a mesma avó na p. 68 que comentava «como era horrível lavar colheres por, devido à sua forma, salpicarem tudo em volta. As colheres é que salpicavam». Quase todas as personagens adultas deste romance sofrem desta isenção de agência e responsabilidade, inconsciência de qualquer nexo entre ato e consequência, ligações que quebram com uma nonchalance proporcional à sofreguidão de Vera as reatar (um mundo de adultos que agem sabe-se lá porquê narrado por uma criança sôfrega, em várias idades, de perceber porquê); as colheres salpicam, nunca elas. Serão Vera e Sofia diferentes?
São diferentes desde logo porque, como nos contos de fadas, são crianças: sendo crianças, são ao mesmo tempo protagonistas e presas. Teoria das Catástrofes Elementares exibe uma capacidade de assinalar perigo que arrepiaria os irmãos Grimm. Todo o romance é pontuado por momentos de lobos: os capítulos 1, 9, 11, 25, 30. Pressentimo-lo desde logo no cap. 7, com a bofetada da avó, inusitada, inesperada, uma cobra na relva, o perigo está sempre à espreita, ali ao lado e nem sequer debaixo da superfície. A sua natureza cíclica é apontada pela mãe, quando, perto do fim, diz a Vera que um stalker que lhe inferniza a vida a deixará em paz «quando arranjar a próxima» (mas não antes — e na verdade, nem depois).
Perante esta enormidade, o que pode uma pequena protagonista fazer? Bom, pode fragmentar, partir as coisas em pedaços pequenos — bitesize. Fragmentar o tempo é fugir-lhe, sair dele «para o ver melhor», capuchinho encarnado a usar estratégias de lobo, fragmentar e reconfigurar, partir e voltar a colar. «Passou-se tudo há 18 anos. O verão dos meus 15 anos tem a sua maioridade. Esse verão, como eu, já é um adulto, pode ir à sua vida», p 128; a própria Vera, é ao mesmo tempo a adolescente desse verão que não sabe colar os pedaços do que lhe acontece e adulta que sabe que as histórias raramente colam ou batem certo. Viver com isso — escrever com isso — é como Teoria das Catástrofes Elementares reinventa o romance, aqui, «como um bom livro de receitas, cheio de histórias e de nódoas».”
Joana Neves