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Georges Simenon: O escritor mais lido do mundo

Conta-se que um dos maiores golpes da edição literária europeia (cuja história, infelizmente, está quase toda ela por registar) foi consumado numa manhã de Novembro de 1982 na última casa de Georges Simenon, em Lausanne, por Roberto Calasso, célebre editor da italiana Adelphi, ao ter conseguido convencer o mítico escritor belga, à época com oitenta anos e traduzido em mais de cinquenta línguas, a publicar consigo. A tarefa não era simples, mas Calasso, refinado intelectual, tinha dois trunfos: um catálogo quintessência do bom gosto literário e a proposta de dar clara preferência aos romans durs do autor, em detrimento dos populares policiais Maigret. Foi o início de uma das relações mais felizes do mundo dos livros: decorridos vinte anos, editor e autor, se este último ainda fosse vivo, podiam festejar cem obras publicadas e quatro milhões de exemplares vendidos. Um sucesso impressionante, mas que tinha um precedente. Em 1934, Simenon decidira trocar a Fayard, o primeiro editor com quem publicou com o seu verdadeiro nome obtendo notória fama, pela aristocrática Gallimard do seu amigo André Gide. Um passo arriscado, porém estudado: Simenon não se contentava com ser o mais lido dos autores franceses, ambicionava o reconhecimento universal da sua arte. A musa da Literatura privilegiou-o como a nenhum outro escritor dando-lhe longa vida e um destino invejável. 

 

Escritor do homem comum 

Georges Simenon nasceu em Liège, na Bélgica, em 1903. Abandonada a escola aos quinze anos, formado no jornalismo local, chega a Paris com dezanove anos, e é aqui que edifica, de início a coberto de vários pseudónimos, um imaginário e estilo imediatamente reconhecíveis, em que o policial é apenas a ponta do icebergue. Juntamente com Céline, é o grande renovador do realismo literário da primeira metade do século xx. Breves, legíveis por todos, os seus romances fundem em dose equilibrada diálogo, descrição e discurso interior, explorando em ambientes diferentes o tema da ruptura, a experiência do desvio, da falha moral e social. Enredo típico, que conhece múltiplas variações: um homem comum, um burguês bem instalado ou mesmo um marginal experiencia um acontecimento profundamente marcante que o atira para uma aventura solitária e desregrada, levando-o a tomar consciência do seu vazio existencial, provocando nele um alheamento social, por vezes sociopata ― como o infame Frank Friedmaier de A Neve Estava Suja. Antecipou com isto o existencialismo de Sartre e de Camus. 

 

Produção torrencial 

O ritmo da produção deste incontornável autor foi também avassalador e está na origem de um dos muitos mitos que rodeiam a personalidade excepcional do escritor e a do seu famoso método de escrita: um processo ditado por um estado de transe, do qual confessa depois pouco recordar. De 1931 a 1972, em quarenta e um anos de carreira, Simenon publicou 150 novelas e 192 romances com o seu próprio nome — dos quais 117, a maioria, são romans durs: termo cunhado pelo próprio para distinguir dos policiais Maigret as suas criações literárias mais exigentes de escrever. Uma média de cinco livros por ano. A sua obra inspirou realizadores como Jean Renoir, Michel Audiard, Claude Chabrol ou Béla Tarr, teve como assíduos leitores Faulkner, Walter Benjamim ou George Steiner, e o volume da sua obra seleccionada é um dos mais vendidos da consagrada Bibliothèque de la Plêiade. Na década de 1960, segundo a Unesco, era o escritor mais lido no mundo, e um nome apontado ao Prémio Nobel de Literatura. Faltou-lhe apenas essa última glória.   

Diogo Madre Deus, editor Cavalo de Ferro 

Texto escrito segundo o anterior Acordo Ortográfico. 

 

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