Entrevista a Antonio Monegal

Como o ar que respiramos, de Antonio Monegal, vencedor do Premio Nacional de Ensayo espanhol em 2023, convida a uma reflexão sobre a importância da cultura e a sua dimensão social. Conversámos com o autor sobre este bem que continua a ser a cultura.

 

Como o ar que respiramos destaca a importância e alcance da cultura. Num mundo globalizado que vive cada vez mais em rede, o acesso à cultura está mais democratizado?

A globalização facilitou, sem dúvida, a circulação e o acesso a produtos culturais, contribuindo para a sua democratização, mas essa facilidade e popularização do acesso é também um efeito da sociedade de consumo, desde antes da globalização. O consumo cultural democratizou-se e isso tem também um efeito económico importante. As maiores empresas multinacionais estão no negócio da oferta cultural. Isto acarreta aspetos positivos e outros negativos, como aquilo que há quem considere a banalização ou standardização da produção cultural. O perigo de homogeneização e de perda de especificidade é frequentemente associado à globalização, mas esta tem também uma dimensão benéfica: a facilidade de circulação e intercâmbio na produção cultural permite-nos uma aproximação ao outro, conhecer a sua experiência, contribui para despertar empatia. Hoje, perante os conflitos atuais e a polarização política, é difícil afirmar que as tecnologias de comunicação nos ajudaram a entendermo-nos melhor, mas é certo que existe potencial para dialogarmos e que as produções culturais alcançam públicos afastados dos locais de onde provêm, que nunca haviam alcançado antes.

 

As alterações climáticas e a sua ameaça à nossa existência têm estado na ordem do dia. Este clima também tem impacto nos ecossistemas culturais?

Se a cultura determina a maneira como nos relacionamos com o que nos rodeia, tanto as causas da crise climática como as suas possíveis soluções têm componentes culturais. Os nossos modos de vida, valores éticos, hábitos e costumes, formas de consumo e a nossa capacidade para imaginarmos um futuro melhor estão culturalmente configurados. Até a nossa confiança no que a ciência nos diz sobre o aquecimento global, ou desconfiança perante o conhecimento científico têm raízes culturais. A literatura, a filosofia, o cinema e a cultura de massas ajudam-nos a pensar horizontes utópicos, ao mesmo tempo que nos alarmam, representado distopias que quereríamos evitar. Precisamos de instrumentos culturais para respondermos a necessidades Pensar o futuro, aspirar a um mundo melhor, não desesperar, são necessidades que exigem instrumentos culturais para lhes podermos dar resposta.

 

Em que medida o desenvolvimento acelerado da inteligência artificial pode revolucionar a produção cultural e a maneira como nos ajuda a pensar o mundo?

A inteligência artificial já está a influenciar a produção artística de múltiplas maneiras, assim como influencia outras áreas do conhecimento. O seu potencial positivo é uma ferramenta que serve as aspirações e a criatividade dos seres humanos. Se, no lugar de a usarmos como ferramenta, delegarmos na máquina as nossas responsabilidades e o nosso conhecimento, a humanidade sairá do processo debilitada, menos livre. O maior desafio neste momento é não perdermos de vista o ser humano, as suas experiências e saberes, as suas tradições, valores e desejos, e conservar essa preocupação com o que é humano, com a vida no planeta no seu todo, mantendo-os no centro e em lugar prioritário neste processo de desenvolvimento tecnológico. A contribuição das máquinas para o desenvolvimento da humanidade não é um fenómeno novo, está na base do nosso avanço enquanto espécie e a tecnologia faz parte daquilo a que chamamos cultura. Sem regulamentação rigorosa, é impossível garantirmos que a inteligência artificial nos tornará mais livres, em vez de mais subordinados e dependentes. Se externalizarmos o nosso saber e delegarmos o nosso conhecimento, empobreceremos enquanto indivíduos, pois o ser humano enriquece-se ao adquirir ferramentas culturais complexas. O mais desejável seria que a filosofia, as artes, a literatura, como manifestações da memória e das aspirações humanas, acompanhassem a ciência, a informática, a engenharia, a jurisprudência e a lógica do dinheiro nestes processos de desenvolvimento que transformarão sem dúvida a humanidade.

 

De épicos como Os Lusíadas aos westerns americanos, a arte tem ajudado a construir ou consolidar imaginários nacionais. Ainda há espaço para as grandes narrativas no quadro atual?

Continuamos a alimentar-nos de relatos. Se são grandes ou pequenos, é uma questão de dimensão relativa, que nos obriga a interrogar-nos sobre aquilo com que os comparamos. Tem-se verificado um declínio naquilo a que chamamos grandes narrativas porque faltam hoje grandes consensos, inclusivamente dentro de uma mesma sociedade. As crenças, mentalidades e imaginários fragmentaram-se. As sociedades têm deixado de ser homogéneas e têm passado a ser plurais, híbridas e complexas. Proliferam os movimentos nostálgicos e de exclusão, que aspiram a um regresso a modelos sociais mais homogéneos, por vezes no âmbito do nacionalismo, da etnia, da religião ou de qualquer outro esquema identitário. Ainda assim, apesar dessa fragmentação, os grupos, as comunidades e as nações continuam a procurar coesão em torno de narrativas partilhadas, alicerçada na memória coletiva ou num projeto comum, que pode ser de libertação, resistência ou de outra modalidade. Essas narrativas continuam a ter expressão e repercussão política, embora já não estejam sempre ao serviço de imaginários nacionais ou ideologias tradicionais. A identidade (nacional, de género, étnica, religiosa) continua a ser um conceito poderoso, com efeitos quotidianos na nossa organização social, e aquilo a que chamamos identidade articula-se de forma narrativa. O ser humano constrói-se a partir de relatos, sejam de grande ou pequena escala. Precisa deles para explicar o seu lugar no mundo.